Em 2003, Dennison Ramalho despontou como um dos principais nomes do horror no Brasil com o curta Amor Só de Mãe. A obra, uma violenta e sombria adaptação da canção “Coração Materno” de Vicente Celestino, conseguiu uma repercussão gigantesca para o gênero no país e abriu caminho para que o cineasta ajudasse a tirar do papel o projeto de Encarnação do Demônio (2007), de José Mojica Marins, o Zé do Caixão.
Desde então, o diretor comandou dois curtas-metragens, Ninjas (2010) e um segmento para a coletânea O ABC da Morte 2 (2014) chamado “J de Jesus”. Também ajudou a criar o seriado Supermax (2016) e atuou bastante na televisão. Levou quinze anos, no entanto, para que o diretor apresentasse ao país o seu primeiro longa-metragem, Morto Não Fala (2018).
Estrelado por Daniel de Oliveira e Fabíula Nascimento, o filme conta a história de um homem que fala com os mortos e trabalha em um necrotério. Quando descobre que a mulher o trai, decide usar as informações de vítimas assassinadas pelo tráfico para arranjar a morte do amante. O problema é que ela acaba morrendo também e decide se vingar do marido.
Ramalho esteve em Curitiba no dia 29 de março para uma sessão especial de meia-noite de Morto Não Fala, durante a programação de lançamento do Cine Passeio. Na ocasião, conversamos com o cineasta sobre sua carreira, influências e as mensagens que quer passar em seus filmes. A entrevista você confere abaixo:
Escotilha » De onde veio seu interesse pelo cinema de horror?
Dennison Ramalho » A minha cinefilia se construiu a partir do horror. Até em outros gêneros, eu ia atrás da estranheza, da morbidez e dessa relação dos personagens com a morte. Um exemplo bem genérico: fui verSalò [ou os 120 Dias de Sodoma], do [Pier Paolo] Pasolini porque era mórbido e tinha a ver com a destruição do corpo. Meio terror, num certo sentido. Eu também gosto muito de heavy metal. Desde 1983, sou muito ligado ao rock pesado. Na música e no cinema, esse universo escuro sempre me atraiu. Nos quadrinhos também.
E o que significa horror para você?
Uma vocação. [O gênero] se tornou um norte artístico. Eu cresci idolatrando um monte de gente, como [Dario] Argento, [George] Romero, [Shinya] Tsukamoto, Takashi Miike e o [José] Mojica [Marins]. Eu pensava: “quero ser um desses caras”. Daí meu foco na carreira no cinema fantástico e de horror. Tenho trabalhado em outros gêneros na televisão, escrevendo, principalmente. Mas eu queria construir uma assinatura nesse gênero.
Sempre fui muito ligado no cinema de Romero. É um cineasta que pensou o cinema de horror conectado com assuntos contemporâneos.
Por que levou tanto tempo para vermos um longa-metragem de Dennison Ramalho?
Em primeiro lugar porque passei muito tempo fora do Brasil estudando. Eu também tava escrevendo muito. Sou mais roteirista do que diretor. Então dei muito mais tempo da minha vida me dedicando a escrever série e outros longas-metragens. Alguns foram realizados e outros não.
Pergunto isso porque desde que comecei a me interessar por cinema de horror brasileiro, por volta de 2006, seu nome aparece como um expoente do gênero no país. Especialmente por causa de Amor Só de Mãe, que é de 2003 e é incrível…
É o meu trabalho favorito, de longe.
Aliás, o debate político é um ponto de proximidade entre Amor Só de Mãe, Ninjas, “J de Jesus” e Morto Não Fala. Você pensa sua obra como uma grande metáfora social?
Sempre fui muito ligado no cinema de Romero. É um cineasta que pensou o cinema de horror conectado com assuntos contemporâneos. É o tal do social commentary. Sempre curti muito isso no gênero e tentei incorporar aos meus filmes. [Queria] falar de onde a gente veio e debater, principalmente, o Brasil.
Dois elementos recorrentes na sua obra é a presença de crítica à polícia e à religião…
Tenho preferências e anti-preferências pessoais. Não gosto de polícia, então fiz Ninjas. Sou um cara muito antirreligioso. Não curto religião organizada, nem dogma. Gosto de enfrentar certos tabus. Tive uma formação religiosa enquanto criança e me dá vontade de afrontar um pouco isso. [Na minha obra], falo de satanismo e de bruxaria. Enfrento as religiões pentecostais. Falei disso em todos os meus filmes. Em “J de Jesus”, o curta de O ABC da Morte 2, eu estava completamente ultrajado com as declarações do Marco Feliciano sobre a Cura Gay. Aí quis fazer um filme que comentasse esse assunto: pastores religiosos dementes tentando exorcizar a homossexualidade de um rapaz, que enxerga esses caras como demônios.
E o que você queria discutir com Morto não Fala?
Queria falar do universo urbano e noturno de São Paulo. Queria discutir a brutalidade e a criminalidade da cidade. Queria falar também do espírito machista e arcaico da periferia. Desse cara que tem que bater no peito e dizer que tem integridade, pois é homem e provedor. Quando descobre um adultério dentro de casa, precisa manter a honra. É esse comportamento sexista que coloca a história em movimento. O terror [no filme] surge por conta dessas mazelas do Brasil: da violência e do comportamento machista e arcaico.
E como estão os preparativos para o Cruz das Almas?
Esse é o projeto do meu próximo longa. Mas agora vai saber o que vai acontecer com esse anúncio de congelamento de financiamento público para cinema (leia mais). Tá todo mundo perplexo com essa notícia. Talvez a gente tenha que buscar dinheiro fora do país.
Para encerrar, qual a tua percepção desse momento pelo qual passa o cinema de horror no Brasil?
Acho que é algo que a gente tem que se orgulhar. Depois do Mojica, eu diria que é a segunda vez em que podemos falar de uma fase dourada do gênero no país. Se contabilizarmos o número de filmes – e não estamos falando de curtas e de documentário, mas de longas-metragens – que estrearam [comercialmente], com todas as suas agruras e flops de bilheteria, é um período do cinema brasileiro em que existe muito cinema fantástico e de horror. Temos As Boas Maneiras, O Animal Cordial e Morto Não Fala e um monte de outros filmes. Acho que essa fase ainda não tem o devido reconhecimento de público, divulgação e publicidade. É uma pena. Mas desde o Mojica, nunca houve um período em que teve uma ressurgência tão forte do cinema fantástico e de horror no Brasil.