Argentino nascido em Buenos Aires, Matías Piñeiro formou-se na Universidad del Cine, onde também ministrou aulas, até partir para Nova York em 2011, após ganhar uma bolsa de estudos em Harvard. Foi durante a participação em uma competição de matemática em Mar del Plata que decidiu que o cinema seria o seu futuro.
Seu primeiro filme, El Hombre Robado (2007), estreou no Bafici e ganhou o prêmio mais importante do Festival de Cinema Internacional de Jeonju (Coréia do Sul) em 2008. Já ele levou como Melhor Diretor no Festival de Cinema de Las Palmas. Foi com a trilogia inspirada na obra do Bardo, por ele batizada de “The Shakespeariada”, que ganhou notoriedade nacional e internacional. Rosalinda, Viola e La Princesa de Francia, obras inspiradas na literatura de Shakespeare, renderam a ele prêmios, além de lhe converter no diretor independente mais renomado da Argentina e nome bem quisto pelos críticos do jornal norte-americano The New York Times.
Além de estudante de mestrado em Escrita Criativa na New York University (NYU), dá aulas de espanhol na mesma universidade e de cinema no Massachusetts College of Art and Design e na Universidade de Rutgers de Nova Jersey.
Convidado para a mostra “Foco” do 5º Olhar de Cinema, Matías separou uns minutos enquanto se prepara para estar em Curitiba durante o festival e conversou com a Escotilha.
Escotilha – Suas obras, além de dialogarem muito com a literatura, têm um olhar sobre a juventude argentina muito diferente do que estamos acostumados a ver. Como você enxerga o momento atual da produção cinematográfica na Argentina e onde você crê que sua obra se insira neste momento?
Matías Piñeiro – Meus filmes surgem dentro do contexto do novo cinema independente argentino, surgido com a crise de 2001, mas depois dela, isto é, em um momento de acomodação e pacificação pós-trauma. Minha primeira produção é de 2006, mas venho estudando, trabalhando e pensando cinema desde 2000.
Meus filmes foram realizados fora do circuito oficial, com o apoio da Universidad del Cine, em comunhão com uma equipe técnica e atores profissionais e amadores, cuja estrutura de produção se aproxima mais da estrutura do teatro independente de Buenos Aires que do cinema profissional. São filmes de baixo orçamento, que alcançam certa exposição graças ao circuito de festivais de cinema como o Bafici.
Existem muitos filmes, de estilos e formas de produção diferentes, no cinema argentino. Eu acho que é um sinal de boa saúde.
Em seguida, tentamos encontrar salas de exibição alternativas como museus e cinematecas, ou salas paralelas como a Malba Cine, a sala Leopoldo Lugones, o cinema Gaumont ou Atlas, em busca de um espaço dentro do circuito semanal. Trata-se de ir encontrando sempre novas formas de produzir e exibir, que permitam seguir produzindo em um sistema que resulte ecológico, ou seja, que permita o círculo virtuoso da produção de um filme após o outro.
Existem muitos filmes, de estilos e formas de produção diferentes, no cinema argentino. Eu acho que é um sinal de boa saúde. O Instituto del Cine [o INCAA, Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales, o equivalente argentino à ANCINE] é a principa fonte de fomento, mas há também diretores que encontram outros caminhos [para produzir seus filmes]. Eu sou um deles. Estou interessado particularmente no crescente número de cineastas mulheres, como Laura Citarella, Melisa Liebenthal, Nele Wohlatz, entre muitas outras.
Rosalinda, Viola e La Princesa de Francia têm como eixo comum a obra de Shakespeare. Como foi esse processo de aproximação entre o teu trabalho e a obra shakesperiana? O que no Bardo te chama tanto a atenção?
Me interessa que a priori parece um gesto anti-cinematográfico: fazer um filme para ir direto ao teatro. Eu gosto de me perguntar o que queremos dizer quando dizemos que algo é cinematográfico. Por outro lado, cheguei a Shakespeare através da leitura e não pelo teatro. Interessava-me a palavra como elemento sonoro, marcador de um ritmo, mas, também, como um conteúdo em que eu pudesse elaborar um enredo.
O texto é uma matéria-prima a partir da qual eu posso executar variações para realizar, junto à minha equipe, nossa própria obra. Me interessa Shakespeare pelo curto-circuito que gera a importância da palavra dentro do cinema, que normalmente cria a ideia de que o mais importante é a imagem e deixa o som em um nível inferior e, dentro desse fenômeno, a palavra como um parasita a ser removido.
O texto é uma matéria-prima a partir da qual eu posso executar variações para realizar, junto à minha equipe, nossa própria obra.
É empolgante ir contra esse preconceito com a palavra falada. Ao mesmo tempo, o grupo de atores com os quais trabalho geralmente tem um vínculo com Shakespeare, creio eu que fotogênico, interessante para se filmar. Além disso, surpreenderam-me as ideias sobre o amor que Shakespeare expressa em suas obras e a complexidade e modernidade de seus personagens. De repente, suas estruturas são mais complexas do que dizem os manuais de roteiro sobre como um filme deve ser. Eu me forço a pensar diferente, pegar outros caminhos, encontrar alternativas, formas originais para a minha preparação. É um material que me estimula em virtude dessa relação sensual – um vai e vem – entre a surpreendente proximidade e a inevitável distância que me gera ao mesmo tempo. Neste atrito eu gero minhas ficções.
Li uma entrevista tua em que você dizia que escrevia seus roteiros já tendo em mente quem faria cada um dos personagens. Ao mesmo tempo, parece existir nos seus filmes um processo colaborativo com o elenco, especialmente com as atrizes. Como você enxerga esse processo que parte do roteiro, passando pela construção do personagem junto ao ator e o seu olhar enquanto diretor? Aproveitando, ser responsável pelo roteiro e pela direção são garantias de um melhor resultado?
Tudo que escrevo é escrito [pensando] diretamente a um ator ou atriz. É uma das primeiras coisas que penso: “Quem vai atuar?”, “Quem será o protagonista?”. Creio encontrar nas comédias de Shakespeare personagens que têm uma relação particular com o ator que vai participar do filme. Maria e Rosalinda, sua inteligência; Viola e Augustina, sua sensualidade e fragilidade; La Princesa de Francia e Julián, sua distância e ironia. Os personagens de meus filmes foram escritos para cada um deles, sabendo o que seria interessante, fotogenicamente, vê-los fazer.
É porque eu conheço estes atores que posso confiar-lhes estes personagens, e sobretudo porque sei que gostam de trabalhar estes textos. São excelentes atores, e aprendo com eles filme após filme, cada vez mais, por isso quero voltar a trabalhar uma vez ou outra com cada um deles; sinto que ainda há muito a ser descoberto.
Penso a concepção do roteiro como um ato de direção, e a direção como a possibilidade de escrever com a câmera o que vai sendo gerado. Não vejo diferença entre roteirizar e dirigir; escrever já é dirigir, e espera-se que dirigir seja continuar escrevendo até o último instante, até que uma pessoa assista ao filme.
Os filmes podem servir como objeto de análise histórica. Assim como outros documentos, eles foram produzidos em determinado período, com intencionalidades, significados. Por vezes, eles tornam frágeis as fronteiras entre realidade e ficção. São, por fim, um registro da sociedade que os gerou. Neste contexto, qual a sociedade que seus filmes retratam? O que eles dizem a respeito dela?
Claro, essa é a tarefa dos historiadores. Em princípio, eu não creio que estes filmes sejam um reflexo direto da realidade, mas são um teatro que habita o mundo, gerando um mundo paralelo que, quem sabe, provoque sua própria realidade. Não consigo pensar minhas ficções como cópia fiel da realidade, mas, sim, como derivações, como linhas paralelas que se estendem desde o que está [acontecendo] no mundo e que se fotografa frente a uma câmera e se dispõe de certa maneira, alcançando, talvez, que em um ponto distante essas linhas possam se cruzar.
São filmes menores, intimistas, destinados a pessoas, a um espectador como indivíduo, que deseja ter contato pessoal com o público, íntimo, na esperança de encontrar uma cumplicidade com todas as pessoas, com um equilíbrio de comunicação que permita pensar as interrupções do coração, a ambiguidade de sentimentos, a mutabilidade do desejo que atravessa a cada um de nós de maneiras diferentes.
Acho que a maneira como os filmes se movem internamente, tentando não dar uma única imagem das coisas, e o modo como eles são feitos é parte de uma política que busca um mundo dialético, progressista, de harmonial paradoxal.
Por último, como é para você fazer cinema ao sul do mundo? Como você enxerga o diálogo entre o cinema latino e o cinema mundial, a partir especificamente do cinema argentino?
O Sul é o lugar onde está meu contexto de vida e de produção, é onde vivi mais – tem cinco anos que vivo em Nova York – e onde estão as pessoas que conheço melhor e com quem quero trabalhar.
Tento pensar o cinema de forma não geográfica, mas, sim, econômica. Parafraseando Jean-Luc Godard, pode-se dizer que se faz cinema de Hollywood na França, Rússia, Argentina ou no Egito. Esse cinema que vem do mainstream não me interessa. É pessoal e um pouco ingênuo isso que digo e o que vou dizer, mas creio que o dinheiro é um problema, e que complica os filmes.
É pessoal e um pouco ingênuo isso que digo e o que vou dizer, mas creio que o dinheiro é um problema, e que complica os filmes.
Eu tento manter a dependência do dinheiro em níveis mínimos e essenciais, porque sempre será necessário, mas tento que não se torne o fator mais importante. Por isso eu gosto de diretores como Orson Welles, Eric Rohmer, Nicolás Pereda, James Benning, Pedro Costa, Lois Patiño, Dan Sallitt, Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, José Luis Torres Leivas, Ted Fendt, Hong Sang Soo, Hollis Frampton, Lucien Castaing-Taylor.
Há filmes latino-americanos que são tão terríveis quanto os de Hollywood. Eles têm a mesma ideologia. Mas, ao mesmo tempo, há filmes norte-americanos muito geniais e humanos. Jonas Mekas é cinema norte-americana, por exemplo. Frederick Wiseman, também.
Então, podemos falar do que falamos quando dizemos Hollywood. Estamos nos referindo a Dorothy Arzner, John M. Stahl e Mark Robson, que produziam filmes excelentes e sensíveis, ou sobre Victor Fleming, Norman Taurog, George Stevens e David Lean, que ganharam o Oscar? Então, a coisa não se define por territórios. Embora seja um fator, creio que não e o fator decisivo.
A partir do cinema argentino, o que mais me interessa vem de Mariano Llinás, Pablo Mazzolo, José Celestino Campusano, Iván Fund, Alejo Moguillansky, Maximiliano Schöfeld, Benjamin Naishtat, Celina Murga. Enfim, minha visão é limitada. Eu preciso ver muito mais.
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