Há muita dificuldade ao falar sobre Michael Jackson e os supostos abusos que o cantor teria cometido com diversas crianças durante anos de vida. O dilema ocorre porque, há muito tempo, Michael Jackson deixou de ser visto como humano. Passou a ser significado como uma entidade, um ser espiritual de luz acima de qualquer suspeita. Algo como um anjo, alguém sem sexo, sem maldade e malícia. Um ingênuo que, por não ter tido infância, tentou recriá-la por meio de um mundo fantástico rodeado por crianças. Uma narrativa eficiente, verdadeira e convincente criada pela mídia e por ele próprio. Tão convincente que é capaz de fazer até as pessoas mais militantes agirem da pior forma que alguém poderia agir em casos de abuso sexual: duvidar da vítima. O fato de Michael ter sido inocentado pela Justiça em 2003 acaba sendo um mero detalhe.
Leaving Neverland, documentário da HBO com quatro horas de duração, vem provocando tanta polêmica nos últimos meses que fica difícil analisá-lo isoladamente, tal impacto que anda causando no legado de Michael Jackson. Dirigido por Dan Reed, o filme aborda o que teriam sido anos de abuso sexual do cantor com duas crianças de 7 e 10 anos, os meninos James Safechuck e Wade Robson, este último bastante conhecido por ter sido coreógrafo de Britney Spears e da banda N’Sync. Hoje, os dois, com mais de 30 anos, vêm a público para contar detalhes de como era a relação com Michael Jackson. É difícil de ouvir, tanto pelos detalhes quanto porque nós não queremos acreditar. A primeira reação é virar o rosto, ignorar uma história que, ora, só pode ser mentira. É mentira, é mentira, é mentira. Mas por quê?
Se formos falar da estrutura documental, não há nenhuma novidade em Leaving Neverland. Por vezes, a narrativa se repete e anda em círculos. Dividido em duas partes de duas horas, dá a impressão de que algo está sobrando na edição. Uns 40 minutos a menos teria sido o ideal. Também vale ressaltar a sensação de timing errado, algo que soa oportunista ao produzir um documentário com uma denúncia tão grave quando o acusado não está mais aqui para se defender. Mas também dá para compreender. Quantas pessoas têm coragem de acusar seus abusadores cara a cara?
Leaving Neverland traz um olhar contundente sobre as ramificações do abuso infantil.
Leaving Neverland, pensando nele como um documentário feito para expor uma verdade escondida, é um trabalho notável por dar voz às duas vítimas e por exemplificar da forma mais detalhada possível o abalo psicológico daquelas crianças.
Sim, independentemente da verdade, Wade e James são vítimas. Afinal, se não estavam sendo abusadas sexualmente, estavam sendo exploradas por pais irresponsáveis, que se deslumbraram com o mundo de faz de contas de Michael e pelas promessas milionárias, por um adulto irresponsável, que colocou no ombro de uma criança a responsabilidade de ser o melhor amigo de alguém que não teve amigos, e por uma cidade (ou sociedade) absolutamente doente, como Los Angeles, em que tudo soa grande demais, plástico demais, ilusório demais. Portanto, vítimas, de uma forma ou de outra.
Se formos analisar o conteúdo e todo o contexto de Leaving Neverland, o documentário é um murro seco. Dói ver dois adultos falarem sobre abusos infantis, pais negligentes e depressão e dói mais ainda perceber que, por ser Michael Jackson, toda e qualquer argumentação é rechaçada. Basta ignorar tudo o que falam e mostram, ignorar o sentimento estranho de que, bem, há algo errado. É mais fácil ficar em Neverland.
Nós insistimos em dizer que Michael era um anjo e ignoramos todos os sinais claros. Os meninos e os pais é que eram mentirosos. Ponto final. Não é raro ver relatos de pessoas na internet dizendo que não verão o documentário “por respeito ao Michael”. Não há o benefício da dúvida. E, assim, as mesmas pessoas que dizem que nunca se deve culpabilizar a vítima, fazem a mesma coisa ou pior, tudo porque o acusado é Michael Jackson, a entidade angelical e não o humano.
Fato é que, para viver em Neverland, as pessoas acabam vendo o mundo preto no branco. Em hipótese alguma Michael poderia ser uma pessoa boa, gentil e amorosa, ao mesmo tempo em que, bem, ele também poderia ser um pedófilo. Ignoram-se questões como pedofilia sendo uma doença — logo, ignora-se o fato de que Michael poderia ser uma pessoa doente. Ignora-se o fato de que acusar Michael Jackson é acusar uma legião de pessoas no mundo todo, que não terão limites para ofender, anular, desacreditar e agredir supostas vítimas. Portanto, é muito difícil dizer a verdade. Ignora-se o porquê de muitas pessoas não denunciarem seus abusadores. Ora, se já é difícil encarar algo assim quando quem abusa é um anônimo, imagine encarar Michael Jackson e tudo o que ele representa. Ficar em Neverland é mais fácil mesmo.
Leaving Neverland, então, sugere justamente que os dois homens deixem de lado a magia de um mundo de faz de contas para enfrentar o mundo real. O convite é extensível a nós e é justamente esse o tormento do documentário. É difícil para todo mundo separar o que é realidade e fantasia. Percebe-se, por exemplo, um brilho no olhar de Wade e James ao lembrar do relacionamento com Michael, uma saudade de algo que já foi, em algum momento, uma espécie de infância. Ao mesmo tempo, e é importante analisar o documentário sob este prisma, Leaving Neverland traz um olhar contundente sobre as ramificações do abuso infantil e de como ele é complexo e perigoso.
É muito mais fácil, porém, continuarmos na nossa nostalgia, repetindo a narrativa de que Michael era a reencarnação da bondade na Terra, tão ingênuo que não percebia que dormir com crianças aos 34 anos de idade era uma coisa inaceitável. Veja, esse hábito seria absurdo em qualquer adulto da vida real, mas Michael Jackson não é visto assim. Leaving Neverland é polêmico não apenas por mostrar detalhes de um abuso sexual pela voz das vítimas, mas porque sugere expulsar todos nós desse mundo de Peter Pan em que nós insistimos em viver.
Assim como boa parte dos documentários, Leaving Leverland toma uma posição clara e não dá brechas para dúvidas. Cabe a nós interpretarmos e decidirmos em quem e no que acreditamos. Difícil, porém, analisar toda a história friamente se não estivermos dispostos a olhar Michael Jackson como alguém humano. Ainda assim, a decisão é nossa. Em tempo, ao menos 11 novas denúncias surgiram contra o cantor após exibição do documentário. Independentemente da verdade, é preciso ressignificar Michael Jackson.