Para começar esta análise, preciso avisar que o texto foi escrito muitos dias depois de eu terminar de assistir ao novo fenômeno da Netflix, Making a Murderer. Mais do que qualquer outra produção já feita pela empresa, eu precisei acalmar os nervos e os ânimos antes de sentar para elaborar um raciocínio coerente. Isso tudo porque a série documental é uma das experiências televisivas mais angustiantes, revoltantes e intrigantes que eu já pude acompanhar.
Investigações criminais sempre foram temas recorrentes e fascinantes na área do jornalismo, desde periódicos que se dedicam a trazer crimes chocantes em suas capas apenas para vender, até enormes circos midiáticos que tratam de condenar ou inocentar alguém mesmo antes do réu sentar no banco do tribunal. Foi assim, por exemplo, com a Escola Base, instituição particular de São Paulo fechada em 1994 após os proprietários do local serem acusados de abuso sexual contra algumas crianças. O caso obteve repercussão nacional absurda por parte da imprensa, que não se preocupou em apurar os fatos e acabou realizando uma cobertura tendenciosa e acusatória, bem como o despreparo do delegado de polícia encarregado das investigações, que por pressão da mídia acabou divulgando provas que não existiam. As acusações logo caíram por terra e todos os indícios foram apontados como inverídicos e infundados. Porém, era tarde demais. A escola nunca mais se recuperou e até hoje a cobertura é objeto de estudo de caso nos cursos de Jornalismo.
O ideal seria que você assistisse à produção da Netflix com o mínimo de conhecimento sobre o caso, mas aqui vai uma pequena sinopse: Making a Murderer é uma série documental, em dez episódios, que conta a história de Steven Avery, um homem que passou 18 anos preso, condenado por um crime de agressão sexual que ele não cometeu. Depois que uma nova prova surge e seu caso é reaberto, Steven é solto. Sendo um homem simples, da zona rural e sem muitos atrativos, era de se esperar que a história não chamasse muita atenção, mas acabou virando um fenômeno para os meios de comunicação, que transformaram Steven no herói injustiçado, vítima de uma sistema jurídico corrupto.
A justiça, aqui, se move com jogos de interesse e o público se vê em uma espécie de Onze Homens e Uma Sentença da vida real.
Mas a paz de Steven dura pouco, quando, apenas dois anos depois de liberto, ele é acusado de um crime muito pior: o assassinato de Teresa Halbach, uma repórter local da cidadezinha onde Steven morava. Se antes a mídia o inocentou, agora o condenava de forma rápida e eficiente. Steven, então, é considerado culpado mesmo antes de provas serem encontradas no suposto local do crime. Tudo isso é contado logo no primeiro episódio e, de forma impressionante, o público não consegue parar até descobrir que diabos aconteceu. Ele poderia ser acusado injustamente pela segunda vez? O Estado poderia armar para cima de Steven apenas para evitar um processo milionário dele contra o governo? Steven ficou tão perturbado que acabou matando uma mulher inocente?
Todos esses questionamentos chamaram a atenção das diretoras Laura Ricciardi e Moira Demos. Intrigadas com a história de Steven, elas decidiram documentar a história. Cada vez mais envolvidas, as duas ficaram mais de uma década produzindo e acompanhando todo o caso. O resultado é um trabalho extremamente detalhado, onde o público consegue facilmente se transportar para o julgamento e se tornar, de alguma forma, também júri, ao mesmo tempo em que se sente completamente incapaz, vulnerável, apenas contemplando um jogo de poder que, independentemente da culpabilidade ou inocência do réu, sempre faz a corda arrebentar para o lado mais fraco. A Justiça, aqui, se move com jogos de interesse e o público se vê em uma espécie de Onze Homens e Uma Sentença da vida real.
Se o caso é instigante por si só, a direção e o roteiro é o grande trunfo de Making a Murderer. Mesmo o documentário estando sempre com o pé na realidade (as gravações, depoimentos e ligações telefônicas são reais), ele é montado de tal forma que parece estarmos assistindo a uma obra de ficção, com quase todos os episódios terminando com uma reviravolta que faz a audiência querer mais.
O bem e o mal são destacados de forma clara, com os advogados de defesa sendo os anjos e os de acusação (representado pelo Estado) como os grandes vilões – o que soa bastante maniqueísta, aliás. Não há como não simpatizar, por exemplo, com os dois advogados contratados para ajudar Steven e não odiar a dicção de Ken Kratz, o promotor, pintado como uma figura capaz de provocar sentimentos raivosos no público. É quase como se estivéssemos vendo algum episódio lúdico de Twin Peaks, lendo o assustador A Sangue Frio, acompanhando algum livro de Agatha Christie ou assistindo a The Killing.
Ao mesmo tempo, esqueça todas as séries do gênero com seus advogados espertos e tribunais charmosos. Em Making a Murderer, nada é glamouroso e tudo é absolutamente suspeito, perverso e sujo. A narrativa também acerta ao mostrar toda a família de Steven, focando especialmente em sua mãe, que vai envelhecendo diante do público de forma melancólica. O silêncio também é usado de forma inteligente em cenas pontuais, como na deliberação do júri. Sem pressa, as diretoras vão mostrando o passar do tempo e o desespero dos familiares, que são obrigados a continuar suas vidas esperando apenas uma decisão que, no fundo, já sabem qual será.
Mas é interessante perceber que o grande trunfo de Making a Murderer também é o que faz do documentário uma obra tendenciosa. As diretoras escolhem acreditar na inocência de Steven e mostrar apenas um lado da história. O resultado, ainda que interessante, é unilateral, mas feito de forma tão eficiente que parece ser a história toda. Entretanto, basta uma busca rápida no Google para descobrir fatos que a produção decidiu esconder (mas só faça isso depois de assistir a todos os episódios).
Ainda assim, o resultado final abre para uma discussão muito maior do que culpa/inocência. O sistema jurídico criminal americano aparece como falido, ineficiente e extremamente corrupto e cheio de furos. Assim, a série provoca o público para um debate ainda mais relevante, especialmente em países que acreditam que a Justiça nos Estados Unidos é infalível e correta (e aqui estou falando especialmente de nós brasileiros). O que vemos é um dos retratos mais assustadores do que pode acontecer com a classe trabalhadora norte-americana, pobre e sem acesso à educação. Falta à família de Steven não somente inteligência lógica, mas instrução sobre o sistema, que claramente consegue manipulá-los facilmente.
Ainda que seja bastante óbvio que quem tem dinheiro consegue uma melhor defesa, no caso de Steven isso se torna mais do que crucial, quando membros da família não entendem, por exemplo, o que quer dizer “uma acusação inconsistente”. Assim, não importa se Steven é culpado ou não, já que a impressão final é de que o próprio sistema o corrompeu de forma profunda.
Sendo um documentário uma visão parcial e subjetiva da realidade, Making a Murderer entra na lista de uma das séries mais impressionantes da Netflix e da televisão, seja por contar essa história de forma criva e frenética ou por dar voz a um homem que viu sua vida na mão de um sistema jurídico que nunca o deu ouvidos. O final pode ter um gosto extremamente amargo para quem assiste, mas é aí que lembramos que a realidade é muito mais assustadora do que qualquer ficção. E que nós, afinal, não estamos livres de sermos Steven Avery.