A ruína e a decadência da sociedade norte-americana pós-crise de 2008 seguem sendo um prato cheio para o cinema e a TV – em um trocadilho mal fadado que o leitor logo saberá interpretar. O Urso, provavelmente a melhor série do ano, produção da FX exibida no Brasil pelo Star+, é um desses casos.
Há diferentes interpretações possíveis para a trajetória do chef Carmy (o brilhante Jeremy Allen White, de Shameless), mas todas culminam no mesmo lugar.
Carmy não é um cozinheiro qualquer, ele foi apontado como a maior promessa da cozinha norte-americana, tendo atuado num dos principais restaurantes do país. Desde cedo, foi montado para o sucesso, a primazia no comando de facas e panelas, quase uma ode ao “American Way of Life”.
Por essa razão, acabou relativamente apartado da família, especialmente o irmão mais velho, Michael (Jon Bernthal, ligeiro, mas encantador), e a irmã Sugar (Abby Elliott).
No seriado criado por Christopher Storer e Joanna Calo, as refeições são caminhos que conectam histórias.
Enquanto a irmã foi tomar conta, em termos, da própria vida, ainda que seu nome estivesse atrelado ao restaurante, Mike estabeleceu o The Original Beef Chicago, um restaurante decadente no estilo short order (em que as comidas são relativamente simples, de modo a ser possível seu rápido preparo).
Com seu falecimento, o testamento direciona o comando do local para Carmy, que abandona seu universo da alta gastronomia para lidar com o dia a dia de um local à mercê do abandono – dessa vez, uma parábola mais próxima dos Estados Unidos pós-2008.
Acredito que já tenha ficado nítido, mas reforço um detalhe importante sobre O Urso: não estamos diante de uma série food porn, em que a comida é o fim. No seriado criado por Christopher Storer (Ramy) e Joanna Calo (Hacks), as refeições são caminhos que conectam histórias.
E nisso reside parte do brilhantismo do roteiro de Storer e Calo, que se distancia da estereotipação do chef estrela, personalista e egocêntrico, sem deixar de oferecer o caos do ambiente de uma cozinha profissional.
E vai além: usa esse espaço como metáfora do que é a decadência econômica de um país em frangalhos, de seus personagens enlutados e do desespero de ter e não ter um dia seguinte.
São diferentes lutos. O luto pela perda de Mike; o luto da mudança de rotina que a chegada de Carmy impõe ao restaurante; o luto de acompanhar de perto a ruína econômica. Para tentar recompor o negócio, Carmy traz a sous chef Sydney (a preciosa Ayo Edebiri), cuja trajetória é semelhante a do personagem de White, tendo quebrado o restaurante que comandava.
O luto individual que se mistura ao luto coletivo dialoga em diferentes camadas com o universo em que O Urso está inserido. Sua constante tensão (é um programa sempre ligado no 220) também arranca o espectador de sua zona de conforto, de modo que nos vemos diante do mesmo caos que os atores, nas quinas apertadas da cozinha, entre facas, panelas, temperos e, por que não, luto.
O Urso é pérola, que já transformou a desesperança aguda de seus oito episódios da primeira temporada em uma renovação. Sugiro ao leitor que, se ainda não está assistindo o seriado no Star+, que comece de imediato.
Talvez o espectador seja capaz de diminuir a urgência de Carmy. Se não, pelo menos será brindado com um espetáculo de programa, que mostra a “cozinha” dos Estados Unidos (e a gastronomia) de modo muito mais realista que os cartões postais.
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