Perder-se numa cidade; perder-se na tela do cinema; a evocação do olhar. O primeiro olhar deslocado daquele que olha pela janela arquitetônica da cidade ou pelo olhar intruso da câmera, logo se transforma em uma multiplicação de experiências subjetivas.
Em um efeito mise en abyme a janela do cinema enquadra as janelas da mise en scène. O espectador torna-se um flâneur, personagem conceitual de Walter Benjamin, um ser ótico por excelência, que observa a cidade sem pertencer à multidão. Dos filmes que representam esse olhar que mergulha dentro da tela, olha e é olhado pelas janelas da cidade fílmica, citarei a Buenos Aires que apequena o sujeito no filme Medianeras: Buenos Aires na Era do Amor Virtual (Gustavo Taretto; 2011). Dos filmes que representam transeuntes anulados pela multidão da cidade faço referência a São Paulo, Sociedade Anônima (Luís Sérgio Person; 1965). Sobre a cidade que não olha e não é olhada apresento o Rio de Janeiro entre o azul do mar e o cinza das edificações que cria O Abismo Prateado (Karim Aïnouz; 2013). Por último, apresento a cidade-ciborgue, o híbrido composto de infraestruturas físicas e redes sociais no filme Ela (Spike Jonze, 2013).
Buenos Aires representada na tela, por intermédio do filme Medianeras – Buenos Aires na Era do Amor Virtual, é uma cidade que dá as costas para o mar e esconde o céu com fios de fibra ótica.
Ao olhar para a cidade fílmica em que vivem os personagens Martin e Mariana, temos nosso olhar enquadrado na tela do cinema. As janelas da mise en scène que enquadram os olhares dos personagens são enquadradas pela câmera, enquadramento e montagem que representam um mundo dentro de nossos olhos, afetados por uma experiência estética, que nos coloca como personagens de uma Buenos Aires tomada por uma arquitetura que se apodera do sujeito, por exemplo, em seu contra-plongée que apequena o espectador.
A cidade nos habita, apropria-se de nós, precisamos nos adaptar aos seus padrões irregulares, sem planejamento e procurarmos rotas de fugas, janelas. As rotas de fugas são construídas pela experiência do olhar, enquadrando um mundo possível e imaginando realidades ausentes. Martin encontra a janela para o mundo emoldurando-o no ciberespaço. Mariana observa o movimento da cidade de dentro das vitrines comerciais. São espaços de pertencimento distanciado, em que o sujeito hipermoderno experimenta a presença do outro afastado desse outro. As medianeras surgem como rotas de fugas, ilegais, pois as laterais dos prédios não podem abrigar janelas. Desse modo, os moradores da Buenos Aires cinematográfica quebram janelas que permitem uma esperança, um novo enquadramento para a cidade.
A cidade nos habita, apropria-se de nós, precisamos nos adaptar aos seus padrões irregulares, sem planejamento e procurarmos rotas de fugas, janelas.
As janelas nas medianeras permitem o olhar do vizinho distante e um prenúncio da fratura do olhar entre Martin e Mariana. Os personagens que são vizinhos de medianeras cumprem os mesmos trajetos pela cidade fílmica, mas nunca se olham. Após a ruptura da janela no lado inútil do prédio, eles se veem dentro dos anúncios publicitários, um olhar distraído que prenuncia um olhar futuro, que se torna possível pelo novo enquadramento de mundo pela janela da medianera.
Como o vizinho distante, que não anda pelos mesmos corredores, mas que observa a movimentação do outro, o espectador acompanha a briga de um casal na cena inicial de São Paulo, Sociedade Anônima, constituindo um olhar intruso que como Jeff de Janela Indiscreta (Alfred Hitchcock; 1954), observa a vizinhança, mediado pela câmera. A mesma cena ao final do filme é vista do interior da casa de Carlos e Luciana, agora sabemos quem são, conhecemos suas vidas e podemos entrar na casa.
A cidade é apresentada em um contra-plongée, uma evidência de que somos sujeitos apequenados, anônimos na cidade de São Paulo. O que se confirma no olhar aéreo da câmera, no trânsito de pessoas na estação – nas multidões somos anulados pela abstração identitária – somos todos.
Nessa cidade fílmica que no preto e branco torna-se cinza, habitamos a São Paulo de Carlos, exposto pelas grandes janelas da mise en scène, que não estabelece vínculos, mas fronteiras entre o (des) habitar interno e externo. Carlos não pode possuir o espaço que é apenas paisagem.
O protagonista que não se adapta aos padrões ao qual é exposto, quer ir embora, em suas palavras quer sumir, precisa partir em busca de um encontro. Desaparecer de São Paulo é pertencer em outro lugar.
Em São Paulo, Sociedade Anônima, Carlos, não é o flâneur que observa a multidão por medo de ser anulado. Ele é o transeunte anulado pela multidão.
Percebe-se que os lugares são textos, pois produzem significados estabelecidos pelos contextos que operam e a experiência daquele que lê esse texto-lugar. A cidade representada no filme O Abismo Prateado é resignificada por Violeta, que acaba de ser deixada pelo marido. Ela vaga pela cidade tentando sair de um lugar que a encurrala entre a praia e as edificações, entre o instinto natural, o amor, que como as ondas é incontrolável, e a razão, uma busca por respostas que não podem habitar o oceano das emoções. Afinal, prédios não habitam mares.
Violeta é uma personagem de formação, suas estradas não são linhas retas, são labirintos. A personagem joga-se na cidade, o abismo é invadido, iniciando a busca pelo marido que será a busca por si mesma, em meio à fuga para longe, o medo do futuro ausente e a falta de aceitação do presente que se impõe. Os espaços de passagem em que Violeta transita são paisagens de contemplação e tensão. As ruas e os túneis são escuros e as luzes dos carros tendem a sempre ofuscar o olhar.
A protagonista que até então está presa no não lugar, no trajeto da cidade, visita o aeroporto com os personagens de passagem, a menina Bel e seu pai Nassir. Há uma barreira, uma vidraça que dá a falsa noção de proximidade com o avião, mas não os permite alcançá-lo, não os permite fugir do ser e estar, encolhidos em si mesmos.
Em O Abismo Prateado, adaptação da música Olhos no Olhos de Chico Buarque, percebe-se a representação de uma praia invadida pela intervenção urbana, em que os personagens compõem um híbrido entre racionalismo e emoção, cultuado no labirinto em que se funde o lugar de morar. O lugar de contemplação que a praia deveria ocupar, parece representar o caos no olhar de uma paisagem que ressignifica o lugar fixo, mas não se comunica com o espaço aberto entre o sujeito e o habitar, formando o abismo.
Em Ela, o personagem Theodore, adquire um sistema operacional com o qual estabelece uma relação afetiva, afetando a condição do sensível do personagem, que não se distancia das infraestruturas físicas da cidade, mas experimenta os lugares, por exemplo, passeando pela praia com Samantha, o sistema operacional.
Constitui-se um híbrido entre o sujeito e a metrópole que não pode ser negado, pois há um elo tramado, entre o sujeito que olha para a cidade e é olhado por ela, vive-se dentro da cidade. Afetada pela tecnologia, a mobilidade na cidade não é mais limitada. Theodore faz passeios, enquanto acessa os emails, conversa com Samantha, vivencia o espaço e contempla as paisagens.
Na representação das cidades fílmicas podemos pensar que habitamos a tela do cinema, assim como habitamos uma cidade. A câmera está em nós, assim como os olhos que flanam as ruas ao deixar a sala escura do cinema. Enquadramos o mundo e somos enquadrados por ele.
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