Não é possível começar a discutir 007 – Sem Tempo para Morrer, quinto e último filme da franquia 007 protagonizado pelo ator inglês Daniel Craig, hoje com 53 anos, sem pensar no que essa encarnação do espião britânico James Bond representa dentro da trajetória do personagem, um dos mais icônicos da história do cinema de ação.
Na pele de Craig, o agente secreto ressurgiu há 15 anos, em Cassino Royale, sob a direção do neozelandês Martin Campbell, não apenas revigorado: era um outro homem. Agressivo, viril, atlético e sem muito tempo a perder com os luxos anacrônicos desfrutados por seus antecessores, interpretados, em ordem cronológica, por Sean Connery, George Lazenby, Roger Moore, Timothy Dalton e Pierce Brosnan.
É inevitável constatar aqui a influência exercida pela Trilogia Bourne sobre esse novo Bond. A combinação de coragem, vigor físico e vulnerabilidade emocional, que caracterizam o agente secreto americano desmemoriado Jason Boune, vivido por Matt Damon, tornaram anacrônico o antigo 007. Era preciso, portanto, repensá-lo.
A mudança deu mais do que certo: Cassino Royale estourou nas bilheterias e fez sucesso entre os críticos. 007 – Quantum of Solace, sob a condução do suíço Marc Forster, deu sequência, em 2008, à nova fase de Bond, mas apesar de ter alcançado êxito comercial, deixou bastante a desejar com um roteiro frouxo, menos envolvente do que o do primeiro longa, cujo arremate havia sido a morte da bondgirl Vesper (Eva Green). Essa perda deixou o espião melancólico, vingativo e, sobretudo, angustiado com a suspeita de ter sido enganado pela mulher amada.
Como apaixonar-se, e ser traído, não eram um riscos que o agente costumava correr em suas encarnações anteriores, o impacto dramático dessa dor acaba se estendendo pelos cinco filmes que trazem Craig no papel principal. Vesper é um fantasma onipresente.
O terceiro e melhor longa desse ciclo é Operação Skyfall, de 2012. O espião britânico, que em outros tempos parecia invencível, e de certa forma intocável em sua eterna elegância e charme, ganhou tridimensionalidade e até mesmo um passado familiar trágico, algo impensável em outros tempos. Nesse terceiro episódio, dirigido pelo luso-britânico Sam Mendes (de Beleza Americana), desfez-se o enigma em torno de suas origens e ele se aproximou do personagem mais humano criado por Ian Fleming.
Skyfall mergulha nas profundezas do inconsciente de Bond, o aproximando de personagens tão díspares quanto Batman e Harry Potter, e lança Bond em uma direção inesperada. Por isso, de certa forma, 007 – Contra Spectre, também assinado por Mendes, é um baita retrocesso em relação a Skyfall. Não tem a mesma densidade do episódio anterior, mas tê-lo assistido é essencial para compreender o que acontece em Sem Tempo para Morrer.
007 – Sem Tempo Para Morrer é dirigido por Cary Fukunaga (da série True Detective) e foi lançado semana passada nos cinemas brasileiros, antes de estrear nos Estados Unidos, mas já com excelente bilheteria no mercado internacional.
O vilão de Spectre, interpretado pelo austríaco Christophe Waltz (oscarizado por Bastardos Inglórios e Django Livre), também vem do passado obscuro de Bond e tem papel fundamental na trama do quinto e derradeiro capítulo da saga. Contá-lo aqui, no entanto, seria um spoiler imperdoável.
007 – Sem Tempo Para Morrer é dirigido por Cary Fukunaga (da série True Detective) e foi lançado semana passada nos cinemas brasileiros, antes de estrear nos Estados Unidos, mas já com excelente bilheteria no mercado internacional. A trama traz Bond aposentado, na Jamaica, após amargar o que ele julga ter sido mais uma desilusão amorosa, com a bela francesa Madeleine (Léa Seidoux, de Azul É a Cor Mais Quente), numa espécie de replay de Vesper.
A tranquilidade do ex-espião não dura muito. Felix Leiter (o ótimo Jeffrey Wright, em breve participação), um velho amigo da CIA, recorre a ele para um pequeno favor, que mesmo contra a vontade do britânico, o recoloca de volta no jogo, graças a uma rede intrincada que o reconecta a Spectre e o põe em confronto com um novo vilão, o russo Safin (Rami Malek, de Bohemian Raphsody), que, graças a uma composição meio canastrona do personagem, faz lembrar algozes de outras versões de Bond.
Malik abusa do sotaque russo, de caras e bocas e de uma respiração sempre meio ofegante, sob o pretexto de ter nas mãos novas armas, capazes de destruir o mundo. O que ele deseja, na verdade, é destruir Bond, por ele ter ligação direta com o passado de Madeleine, que ressurge na trama.
Além de algumas eletrizantes sequências de ação – como a que tem como cenário uma cidade medieval no interior da Itália, no início do filme, e outra em Santiago de Cuba, em companhia da estrela Ana de Armas –, o que 007 – Sem Tempo Para Morrer, um filme com altos e baixos, tem de melhor a oferecer é mesmo o réquiem do James Bond de Daniel Craig. Ele demonstra ser um ator de muitos recursos, ao mesmo tempo muito viril e sensível. É complexo, contemporâneo.
A despedida do personagem, que teve sua estreia adiada tantas vezes por conta da pandemia, nos deixa com a certeza de que, para sobreviver aos novos tempos, o agente secreto terá de continuar se reinventando para não se tornar anacrônico. Talvez como um homem negro, gay, trans ou uma mulher. Só o tempo poderá dizer.