Sintético, o nome dado ao premiado filme de Bruno Carboni, O Acidente, define com perfeição o âmago deste longa-metragem: tratar como eventos poucos importantes do cotidiano podem configurar rupturas irreversíveis na vida. É o que acontece com Joana (Carol Martins) quando, ao deslocar-se de bicicleta para um compromisso profissional, é fechada no trânsito por um carro vermelho.
Talvez diferente de tantos outros momentos de sua vida, Joana resolve não aceitar a situação. Ela vai atrás do carro e, ao alcançá-lo, posiciona-se na frente do veículo, onde está Elaine (Gabriela Greco) e seu filho Maicon (Luis Felipe Xavier), de doze anos. Cria-se um duelo silencioso entre as duas mulheres no meio da chuva, e Elaine resolve acelerar o carro, arrastando Joana, que está presa no capô, junto de sua bicicleta.
Em tempos de hiperconectividade, O Acidente nos apresenta uma realidade em que, mesmo com rotinas atribuladas, as pessoas estão cercadas pelo não-dito.
A partir daí, a normalidade que cerca as duas e suas famílias será rompida. Logo em seguida sabemos que Joana está grávida: ela está em uma relação homoafetiva com Cecília (Carina Sehn), e ambas geram um filho bastante esperado. Contudo, o que entendemos é que há uma mudez permanente entre as duas. Joana, sobretudo, parece uma esfinge à companheira, que tenta, de forma meio afobada, entender os seus reais sentimentos quanto ao relacionamento das duas e à gravidez planejada.
Mas há uma segunda família cuja regularidade será quebrada. Cléber (Marcello Crawshawn), o ex-marido de Elaine, usará o episódio para tentar conseguir a guarda do filho – que, segundo ele, está mal tratado e precisa ser encaminhado para uma escola militar. E tudo isso só começa a se desenrolar por conta de um acontecimento típico da pós-modernidade: Maicon filma sua mãe atropelando Joana e coloca o vídeo na internet.
Um retrato delicado sobre as alienações familiares
É interessante notar que O Acidente vai na contramão do ritmo alucinante que circunda boa parte dos vídeos presentes nas redes digitais, cada vez mais acelerados e frenéticos. Em tempos de hiperconectividade, Bruno Carboni nos apresenta uma realidade em que, mesmo com rotinas atribuladas, as pessoas estão cercadas pelo não-dito. Quase como se o excesso de imagens (que surgem, sobretudo, pelos olhos do personagem mais jovem, o adolescente Maicon) tivesse gerado uma perda da linguagem.
A história contada parece nos falar sobre essa impossibilidade de encontros nas relações, mesmo as mais íntimas. Joana e Cecília parecem desentender-se em silêncio – Cecília, em vários momentos, reclama de que sua companheira guarda segredos. Por outro lado, há a incomunicabilidade entre Elaine e seu ex-marido, e dos dois com seu único filho, cujo olhar poético é absorvido pelos pais apenas pelo ângulo da estranheza.
Nesta busca inconsciente por conexão, Joana acaba envolvendo-se cada vez mais com essa outra família que cruzou seu caminho por acidente. Por que faz isso – o que a faz parecer mais interessada no drama desses desconhecidos do que nos seus próprios e na gravidez compartilhada com Cecília? As respostas não são dadas de maneira explícita, mas exploradas de maneira delicada e sutil por meio uma direção de fotografia inspirada, que aposta nas cores frias, além da atuação tocante do elenco.
Há, no dissenso e na aproximação entre as duas famílias, uma mensagem que soa potente sobre a possibilidade de pontes entre dois lados – a atropelada e a agressora, a vítima e a algoz – que têm muito mais em comum do que pode parecer. Vencedor de 3 Kikitos na Mostra de Longas Gaúchos no Festival de Gramado (incluindo de Melhor Roteiro e Melhor Atriz para Carol Martins), O Acidente é uma obra de beleza rara que consegue dizer muita coisa ao espectador atento.
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