O que torna uma obra literária atemporal? Talvez seja, a despeito das circunstâncias históricas em que foi escrita, o fato de ela tratar de temas universais, essenciais à condição humana em qualquer tempo. A relevância e a atualidade do romance Mulherzinhas, publicado pela escritora norte-americana Louisa May Alcott em dois volumes entre 1868 e 1869, depois reunidos em uma única edição, podem ser explicadas porque o clássico fala de um tema que, mais de 150 anos mais tarde, segue urgente: a luta das mulheres por independência, por serem ouvidas e respeitadas em um mundo ainda fortemente moldado pela perspectiva masculina. Por isso, não espanta que Adoráveis Mulheres (2019), quarta adaptação cinematográfica do livro (sem falar das televisivas), seja um dos grandes sucessos da temporada, abocanhando seis indicações ao Oscar, incluindo melhor filme.
Com uma bilheteria mundial de US$ 131 milhões até o momento, mais do que o triplo de seu orçamento (US$ 40 milhões), Adoráveis Mulheres é, apesar de narrar uma história ambientada na Nova Inglaterra do século 19, um filme contemporâneo, atual tanto na forma quanto nos temas que discute. A cineasta Greta Gerwig (de Lady Bird – A Hora de Voar), sua diretora e roteirista, não se limita a adaptar o romance autobiográfico de Louisa May Alcott. Como a artista inquieta e questionadora que é, ela se apropria da obra, nela mergulhando fundo, para recriá-la com notável frescor.
A protagonista da história, Jo March, interpretada com uma bem-vinda combinação de fúria e vulnerabilidade pela incrível Saoirse Ronan (indicada ao Oscar pela quarta vez aos 25 anos), é uma garota à frente de seu tempo. No roteiro, Greta quebra a linearidade do romance, situando a ação em dois tempos. A trama inicia-se com Jo em Nova York, morando em uma pensão, tentando sobreviver graças às histórias que publica anonimamente em periódicos da época. Ela também envia parte do dinheiro que ganha para a família, que vive com dificuldades em Concord, cidade histórica no interior do estado de Massachusetts.
Com uma bilheteria mundial de US$ 131 milhões até o momento, mais do que o triplo de seu orçamento (US$ 40 milhões), Adoráveis Mulheres é, apesar de narrar uma história ambientada na Nova Inglaterra do século 19, um filme contemporâneo, atual tanto na forma quanto nos temas que discute.
O segundo tempo do filme se passa sete anos antes, durante a Guerra Civil. Jo, então uma adolescente inquieta, vive com a mãe, a afetuosa e compreensiva Marmie (a excelente Laura Dern, de História de um Casamento), e três irmãs: a mais velha e sonhadora Meg (Emma Watson, a Hermione dos filmes da série Harry Potter), a espevitada e ambiciosa Amy (a revelação Florence Pugh, de Midsommar – O Mal não Espera a Noite e indicada ao Oscar de coadjuvante) e a sensível Beth (Eliza Scanlen, da série Objetos Cortantes).
Como o pai (Bob Odenkirk, do seriado Better Call Saul) voluntariou-se para servir do lado dos ianques na guerra, a residência dos March se torna uma casa de seis mulheres, contando com a empregada da família Hanna (Jayne Houdyshell, de Hora de Voltar). E os tempos são duros: todo o dinheiro é contado, embora elas contem com a ajuda eventual da irmã do pai, a rica e ranzinza tia March (Meryl Streep, em uma pequena, porém marcante participação).
Ao costurar com fluidez esses dois tempos narrativos, o excelente roteiro de Adoráveis Mulheres, forte candidato ao Oscar, proporciona ao espectador uma visão mais complexa das transformações pelas quais Jo e suas irmãs passaram ao longo do tempo, entre a infância (de Beth) e adolescência das demais e a idade adulta. Algo que chama muita atenção no filme é como os diálogos e a direção cheia de energia de Greta Gerwig, que merecia ter sido indicada ao Oscar, conseguem dar às personagens ao mesmo tempo um forte senso de individualidade (são muito bem delineadas), mas também de coletividade, de família – elas completam as frases umas das outras, se movem em cena como um conjunto múltiplo e coeso, lindamente representado na tela e sempre em movimento, jamais estático.
Os homens de Adoráveis Mulheres são todos coadjuvantes, porém importantes. O jovem vizinho Laurie (Timothée Chalamet, de Me Chame peo Seu Nome) é também adorável a sua maneira. Filho de mãe italiana, e criado pelo avô (o ótimo Chris Cooper, de Adaptação), ele representa tanto no livro quanto no filme uma masculinidade interessante, parceira, cúmplice, excêntrica, algo também perceptível na extravagância sutil de seus trajes – o figurino do filme, assinado por Jacqueline Durran (vencedora do Oscar por Anna Karenina), é, por sinal, um dos muitos pontos altos do filme. Outro personagem masculino marcante do filme é o professor Frederich Bhaer (o francês Louis Garrel, de Canções de Amor), vizinho de Jo em Nova York com quem ela também mantém uma interessante relação de companheirismo, fundamental no processo de autodescoberta da escritora que a protagonista pretende ser.
Como na obra da inglesa Jane Austen, discutem-se em Adoráveis Mulheres os limites impostos às mulheres pelo mundo dos homens. Como diz Amy a Laurie em uma das cenas mais potentes do filme, o casamento é uma “proposta econômica” naquele tempo em que, salvo raríssimas exceções, mulheres não poderiam sobreviver sozinhas, se autossustentar. Jo busca, bravamente, desafiar essa lógica, descartando o casamento como objetivo de vida e tentando impor-se por meio de sua sua produção intelectual, algo, de certa forma, até hoje ousado, revolucionário. Ela luta como uma garota. A exemplo de Louisa May Alcott e Greta Gerwig.
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