Em 2018, a cineasta Maria Augusta Ramos lançou O Processo, documentário totalmente observacional, sem entrevistas e narrações, que mostra um extenso encadeamento de imagens, falas e fatos que levaram à retirada do poder da então presidente Dilma Rousseff. Em 2019, a Netflix disponibilizou Democracia em Vertigem, de Petra Costa, que concorreu ao Oscar 2020. Ao narrar os acontecimentos em primeira pessoa, a diretora faz um documento histórico da política brasileira nos últimos anos sem deixar de lançar impressões pessoais a respeito de tudo o que contou com sua voz e câmeras.
Agora, mais um documentário aumenta a lista de filmes sobre o principal acontecimento político de 2016 no país. Trata-se de Alvorada (2021), das cineastas Anna Muylaert e Lô Politi. O filme retrata o cotidiano de Dilma Rousseff em sua residência oficial, o Palácio da Alvorada, enquanto esperava o desfecho do processo que a tiraria da presidência. Alvorada estreou em abril, no festival É Tudo Verdade, e chegou ao circuito comercial em maio, disponível em diversas plataformas digitais.
É difícil negar que o filme cumpre o seu papel de ser importante documento da história recente do país. Isso vai além da inevitável polarização de endeusamento ou demonização de sua simples existência
Do ponto de vista técnico, o documentário investe na perspectiva de não intervenção, da equipe de cinema como observadora discreta, com câmeras captando o maior número de acontecimentos, fazendo o possível para estimular as pessoas a se comportarem como se não estivessem sendo filmadas. É o que se costuma chamar de “técnica da mosca na parede”, típica do “cinema direto”. É uma referência à discrição na captação dos fatos, sem interferência.
Em Alvorada, no entanto, em diversas ocasiões essa escolha de não intervenção por parte das cineastas é quebrada e exposta ao público no processo de edição. Uma das cenas mais emblemáticas quanto a isso (e lançada no trailer, inclusive) mostra a equipe de filmagem perguntando para a então presidente: “E como é que você ‘tá’ sentindo a nossa câmera?” Ela não demora em responder: “Invasiva. E tem hora que excessiva.”
Em vários momentos, a edição mostra Dilma pedindo à equipe para que se retirasse do ambiente, deixando claro que seriam tratados assuntos sigilosos e estratégicos. Outro exemplo dessa “quebra” do distanciamento entre quem filma e quem é filmado acontece quando Dilma, “personagem principal” do documentário, alimenta um debate justamente sobre o fato de ela ser ou não um personagem.
O documentário expõe acontecimentos históricos bem marcados com legendas explicativas como, por exemplo, a sessão da Câmara dos Deputados que autorizou a instauração do processo de retirada do poder da então presidente; o depoimento de Dilma Rousseff no Senado; e a sua saída do Palácio do Planalto. Junto com esses fatos mais públicos, existe também a exposição de situações mais reservadas, como reunião com líderes políticos da base aliada; encontro com lideranças de movimentos de mulheres; e reunião do Tribunal Internacional pela Democracia no Brasil, com integrantes de países como, por exemplo, Argentina e Colômbia.
Uma característica bem peculiar deste trabalho de Anna Muylaert e Lô Politi que vai além do simples registro de fatos históricos é dar visibilidade (mesmo que mais em termos de imagem do que de voz) aos funcionários que fazem os bastidores do poder funcionar. São cozinheiros, jardineiros, profissionais de serviços gerais e vários outros trabalhadores. É uma escolha marcante. Afinal de contas, é comum todos vermos a “máquina do poder” atuando com seus presidentes, ministros, senadores, deputados, assessores. Mas os tantos outros funcionários são histórica e solenemente lançados à invisibilidade.
Alvorada tem falhas na captação de som, dificultando para o espectador a compreensão de algumas falas. Não deixa de ser uma característica do “cinema direto”. Em alguns momentos, inclusive, a câmera até treme mais que o normal, além daquilo que poderia ser considerado um procedimento de captação de imagens com qualidade.
Independente disso, é difícil negar que o filme cumpre o seu papel de ser importante documento da história recente do país. Isso vai além da inevitável polarização de endeusamento ou demonização de sua simples existência, considerando os ânimos exaltados que todo esse processo de afastamento da primeira mulher presidente do Brasil e seus fatos correlacionados provocaram. E ainda provocam.
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