Havia algo de quase clandestino na estreia de Amores Brutos em Cannes, no ano 2000. O filme não estava nas competições principais, não tinha grandes estrelas nem alarde. Surgiu, discreto, na Semana da Crítica — e bastou uma sessão para incendiar o festival. De repente, todos falavam daquele jovem diretor mexicano que filmava o submundo da Cidade do México com uma intensidade rara, quase física, e de um realismo que parecia sangrar na tela.
O título original — Amores Perros — já anunciava o território que o filme habitava. Nele, amor e ferocidade são faces da mesma moeda. A ternura é uma miragem breve entre os golpes, e cada gesto de afeto carrega o pressentimento da perda. Alejandro González Iñárritu, em parceria com o roteirista Guillermo Arriaga, constrói uma narrativa em ruínas, feita de três histórias que se cruzam num acidente de carro. Da colisão, nasce uma teia de vidas quebradas, onde os cães são ao mesmo tempo espelhos e vítimas da humanidade.
Na primeira história, um rapaz (Gael García Bernal) tenta fugir da miséria apostando o próprio cão em rinhas clandestinas. Quer dar à mulher que ama — e ao filho que não é seu — um futuro digno, como se o amor pudesse ser comprado com o sangue dos outros. Na segunda, uma modelo, envolvida com um homem casado, vê sua vida de luxo desmoronar quando o cachorro de estimação desaparece sob o assoalho do apartamento novo. E na terceira, um ex-guerrilheiro, agora mendigo e matador de aluguel, tenta reconstruir um sentido de vida entre cães abandonados e fantasmas do passado.
As três histórias se entrelaçam em espirais de violência e desespero, filmadas com uma urgência quase documental. Rodrigo Prieto, diretor de fotografia, transforma a câmera em uma extensão dos corpos — ela tropeça, corre, respira junto com os personagens. Há suor, sangue e poeira em cada plano. A Cidade do México aparece como um corpo vivo e doente, onde tudo lateja: o barulho dos carros, o eco distante das sirenes, o rosnado dos cães.
As três histórias se entrelaçam em espirais de violência e desespero, filmadas com uma urgência quase documental.
As cenas de luta entre animais — filmadas com economia e um realismo desconcertante — são o coração bruto do filme. Não se trata de espetáculo, mas de uma experiência sensorial que traduz, em imagens, a lógica selvagem que governa o mundo retratado. A promessa de que nenhum animal foi ferido durante as filmagens não alivia o desconforto. O que dói ali é a humanidade — ou sua ausência.
Amores Brutos não é um filme sobre cães, mas sobre o que neles nos reflete. Cada personagem, à sua maneira, está preso ao próprio instinto: o desejo, a vingança, a culpa. O amor, aqui, é sempre um campo de batalha. Iñárritu não julga, apenas observa — e, nessa observação, revela o que há de mais íntimo e mais bestial nos laços humanos.
Há algo de trágico em perceber como, mais de duas décadas depois, o filme permanece atual. O México de Iñárritu poderia ser qualquer metrópole latino-americana — um espaço onde a desigualdade se mistura ao amor e à violência cotidiana, onde a sobrevivência se confunde com a ferocidade. Rever Amores Brutos hoje é reencontrar o cinema em seu estado mais cru: feito de carne, ruído e culpa. Um cinema que morde, e não solta.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.