É impossível não pensar no filme norueguês A Pior Pessoa do Mundo ao assistir a comédia dramática Os Amores Dela, longa-metragem estreia da cineasta francesa Charline Bourgeois-Tacquet. Como a personagem principal do drama de Joachim Trier, sua protagonista, Anaïs (vivida pela revelação Anaïs Demoustier) é uma jovem mulher em busca de seu lugar no mundo.
Estudante de Literatura, Anais chega a ser irritante devido a sua aparente autoconfiança e instabilidade, que, por um outro lado, também podem ser interpretadas como liberdade. Ela prepara, sem muita pressa ou convicção, uma tese sobre a representação do amor romântico nas letras francesas dos séculos XVII e XVIII.
Ao mesmo tempo, Anaïs tenta driblar o desemprego, a falta de dinheiro para pagar o aluguel e um relacionamento morno com o namorado, Raoul, ao lado de quem não suporta a ideia de dormir, mas que a engravida por acidente – ela nem cogita ter a criança. O rapaz a acusa de ser autocentrada demais, de pensar somente em si, o que parece, de certa forma, ser verdade.
O grande trunfo de Os Amores Dela é nos conduzir, como espectadores, pela subjetividade errática de sua protagonista, que é tudo menos uma heroína romântica tradicional, virtuosa.
Na ressaca desse desencontro, e de um rompimento, Anais conhece Daniel (Denis Podalydès, integrante da Comédie Française), um meio vizinho bem mais velho que ela, como quem vive um caso fugidio, pouco significativo.
Dona de uma personalidade ao mesmo tempo muito cativante, porém invasiva, inconveniente, ela tem a capacidade de atrair e repelir com a mesma destreza. Até mesmo com o pai e a mãe, doente de câncer, a personagem vive uma relação oscilante, afetuosa, mas também refratária.
Do affair com Daniel, Anais sai com um súbito interesse, quase obsessão, pela companheira do amante, a escritora Emilie (a premiada atriz e diretora Valeria Bruni-Tedeschi, de A Fratura), que ela conhece primeiro apenas por seus escritos, com os quais se identifica prontamente. É como tivesse encontrado uma versão sua mais madura, experiente e bastante letrada. E, após um encontro acidental, Anais não hesita em se aproximar da autora e fazer valer seu desejo.
O grande trunfo de Os Amores Dela, que participou da Semana da Crítica, no Festival de Cannes 2021, é nos conduzir, como espectadores, pela subjetividade errática de sua protagonista, que é tudo menos uma heroína romântica tradicional, virtuosa.
Enquanto não descobre exatamente o que pretende da vida, ela tenta, erra, mete os pés pelas mãos, fere e se machuca, em nome de seu direito de ser o que é. Não é uma personagem fácil de gostar, porque, talvez, nos desafie em nossa busca burguesa, conservadora mesmo, por estabilidade e definições.
O filme, que como sua protagonista parece um tanto perdido na primeira metade, cresce muito à medida em que o relacionamento entre Anaïs e Emilie se aprofunda, e tensiona a vida de ambas, até sua explosão sensual, em uma linda cena de amor numa praia deserta. A direção sensível de Bourgeois-Tacquet anuncia o surgimento de uma cineasta promissora, ousada.
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