O francês Leos Carax (de Holy Motors), um dos maiores nomes do cinema contemporâneo, sempre teve uma relação essencial com a música, onipresente em sua obra, desde seus primeiros filmes, Boy Meets Girl (1984) e Sangue Ruim (1986). E, embora tenha assinado videoclipes de artistas como a cantora ítalo-francesa Carla Bruni e a banda britânica New Order, ele nunca havia realizado um longa-metragem musical até Annette, filme que lhe rendeu o prêmio de melhor direção no Festival de Cannes deste ano e que, na última semana, chegou à plataforma de streaming Amazon Prime internacional.
Na fronteira entre o hiper e o surrealismo, a filmografia de Carax sempre discute, de alguma forma, o amor romântico, estilhaçando idealizações e o conduzindo a territórios muitas vezes sombrios, assustadores até, em tensos diálogos com mazelas do mundo moderno. Em Annette, ele enfoca e confronta o grotesco e o sublime no mundo das celebridades, habitado por seus dois protagonistas.
Henry McHenry, vivido por Adam Driver (de História de um Casamento), é um comediante adorado por seu público, hipnotizado por seu humor corrosivo e politicamente incorreto, que não poupa nem a ele mesmo. Quando a ação do filme inicia, ele vive uma intensa história de amor com a diva da ópera Anne Defrasnoux ( a maravilhosa Marion Cotillard, de Piaf – Hino ao Amor), mundialmente conhecida e admirada por seus talentos artísticos e sua beleza. Eles formam um casal improvável, aos moldes de a Bela e a Fera, e se tornam um prato cheio para a mídia sensacionalista, que os acompanha como se estrelassem uma novela de televisão.
Boa parte da trama se passa em Los Angeles, cenário perfeito para a proposta estética de Carax, que a retrata como simulacro, uma extensão de suas representações no mundo do entretenimento ao ponto de nela se tornar impossível separar realidade e ficção. Na primeira parte da trama, Henry e Anne estão em cartaz: ele, com um espetáculo de stand-up num lendário teatro da cidade, o Orpheum, e ela estrelando uma ópera, apresentada, no ultramoderno Walt Disney Concert Hall.
Boa parte da trama se passa em Los Angeles, cenário perfeito para a proposta estética de Carax, que a retrata como simulacro, uma extensão de suas representações no mundo do entretenimento ao ponto de nela tornar-se impossível separar realidade e ficção.
O grotesco e o sublime se entrelaçam nos dois espaços cênicos e na vida dos personagens, que decidem se casar, para deleite dos meios de comunicação, que deseja sugá-los até o bagaço. Pouco tempo depois ela fica grávida de Annette e o interesse pela privacidade do casal atinge níveis estratosféricos. O que se segue, contudo, não é um conto de fadas: a aparente felicidade dos dois com a chegada da filha se esfacela. Emerge em Henry seu lado monstruoso. Driver dá conta, magistralmente, desse arco dramático.
A excepcional trilha sonora composta pelo duo norte-americano Sparks, formado pelos irmãos Ron e Russell Mael, também autores do argumento de Annette, acompanha o filme, antes mesmo da narrativa começar, com a canção “So May We Start”, é utilizada para apresentar o elenco, composto, em grande parte por atores e atrizes que não são cantores profissionais. As músicas navegam entre o pop, o rock e erudito e se sucedem como elemento fundamental na condução do enredo, tanto das ações como dos sentimentos vivenciados pelos personagens.
A mise-en-scène de Leos Carax leva a trama ao onírico e, por fim, ao surreal – a menina Annette, em boa parte da trama, é uma boneca robótica. É como se o cineasta estivesse dizendo que um casal midiático, resultado do encontro de personas, mais do que seres humanos, não pudesse gerar uma pessoa de verdade.
Apesar de ser um musical, Annette não é um filme fácil, palatável, do qual se sai feliz, cantando e dançando. Não mesmo! Esteticamente arrebatador, também dilacera por conta da violência, real e simbólica, que aos poucos vai se construindo até tomar conta da narrativa. Suas imagens assombram por horas, senão dias, após os créditos finais.