Entre a realidade e a ficção, Aranha, filme do cineasta chileno Andrés Wood, em cartaz nos cinemas brasileiros, incomoda muito. E não apenas porque desenterra fantasmas do passado, mas porque também coloca o dedo em uma ferida mais do que aberta: a ascensão da extrema direita em alguns países do mundo, entre eles, o Brasil.
Wood, diretor do ótimo Machuca, que pode ser visto na Netflix, abre a narrativa de Aranha com uma sequência perturbadora. Nas ruas de Santiago, capital do Chile, um rapaz rouba a bolsa de uma mulher e sai correndo. É perseguido de carro por um homem, na casa dos 60, 70 anos, que o encurrá-la em um beco, onde o ladrão é esmagado contra a parede. Enquanto a polícia prende o motorista, boa parte do público o aplaude como se fosse um herói. Sinal dos tempos.
A partir desse momento, aos poucos vamos descobrindo quem é esse justiceiro por meio de duas narrativas paralelas, uma no presente e outra no início dos anos 1970. Durante o governo de esquerda do presidente Salvador Allende, deposto e morto em 1973, uma organização terrorista de extrema direita, formada em grande parte pelos jovens filhos de famílias abastadas e conservadores, comete atos de violência contra militantes de esquerda. Não se conformam com o fato de o país estar nas mãos de socialistas.
O grupo se chama Pátria e Liberdade, mas também é conhecido como Aranha, por conta do símbolo que o representa. Defende valores nacionalistas, contra o globalismo, e teme que o Chile sucumba de vez ao comunismo e se torne uma nova Cuba. Para que isso não aconteça, adotam estratégias radicais.
Um dos aspectos mais instigantes de Aranha é que se trata de uma trama sem protagonistas, sem heróis.
A trama, que embora tenha pano de fundo histórico, é ficcional e gira em torno de um triângulo amoroso, formado por integrantes da Aranha. O jovem casal Ines (Maria Valverde), uma estudante de História, e Justo (Gabriel Urzúa), ambos da elite chilena, se encanta pelo ex-soldado da Aeronáutica Gerardo (Pedro Fontaine), rapaz da classe trabalhadora, também de direita, absorvido e usado pela Pátria e Liberdade, que tem como líder Antonio, vivido pelo brasileiro Caio Blat, dublado em espanhol.
Descobrimos que Gerardo, agora vivido por Marcelo Alonso, é o atropelador da sequência inicial, encaminhado a um manicômio judicial por influência de Ines (a argentina Marcedes Morán, de O Pântano), agora colunista de um grande jornal conservador. Ela não deseja, de forma alguma, ver seu passado obscuro vindo à tona, desenterrado pelas páginas policiais.
Um dos aspectos mais instigantes de Aranha é que se trata de uma trama sem protagonistas, sem heróis. Todos os personagens centrais são odiosos, cada um à sua maneira. Ines é uma mulher manipuladora, beirando o sadismo. Justo, por sua vez, é hoje um homem fraco, alcoólatra, corroído pelo fato de a mulher nunca tê-lo amado de verdade. Gerardo envelheceu como um fascista radical, violento e com traços de psicopatia. O pior de tudo? Nenhum se arrepende de ter feito parte da Aranha, que, na cabeça deles, teria salvado o Chile do marxismo.
Essa impossibilidade de escolha de termos, como espectadores, alguém por quem torcer, e de o discurso classista, xenófobo e racista da organização, e dos personagens, soar familiar demais para nós, brasileiros, torna a experiência de assistir a Aranha desagradável, inquietante.
Wood faz a corajosa, e talvez arriscada demais, opção de borrar as fronteiras entre História e ficção, emprestando ao longa, que disputou uma vaga na categoria de melhor filme internacional no Oscar 2020, um tom por vezes novelesco, melodramático. Isso, talvez, banalize e desperdice, por vezes, tema tão sério, grave. Ainda assim, Aranha, por conta do ótimo elenco e da direção tensa do cineasta chileno, merece ser visto. Torna-se uma fábula cautelar em tempos de bolsonarismo.