Em sua terra natal, o excelente Argentina, 1985, representante do nosso país vizinho na corrida pelo próximo Oscar de melhor filme internacional, tornou-se um fenômeno cultural. Já levou mais de um milhão de espectadores aos cinemas, lotou sessões, antes de ser lançado no mercado externo pela plataforma de streaming da Amazon, o Prime Video, que coproduz o longa-metragem.
A repercussão na Argentina faz todo o sentido, apesar de o filme de Santiago Mitre (diretor de Paulina), em tese, contar uma história que por lá todos conhecem bastante bem. A razão? O promotor Julio Strassera, protagonista do longa, vivido pelo astro Ricardo Darín, é uma espécie de herói nacional que, até sua morte, em 2015, desempenhava papel importante nos debates jurídicos e políticos do país.
Para nós, brasileiros, Argentina, 1985 tem função quase educativa: conta de forma didática, porém nunca burocrática, como Strassera, um funcionário público obscuro, tornou-se o símbolo de um sistema judiciário que foi o único na América Latina a julgar e condenar os principais líderes e responsáveis por crimes contra a humanidade durante a ditadura militar no país vizinho, que se estendeu de 1976 a 1983.
No Brasil, onde houve anistia geral e irrestrita, e os militares jamais foram julgados e condenados por seus crimes, hoje vivemos desdobramentos dessa história que nunca teve um desfecho, um ajuste de contas.
Strassera, que durante o regime jamais se pronunciou publicamente contra os desmandos da ditadura, foi designado a elaborar a peça de acusação contra os líderes das juntas militares que comandaram à mão de ferro o país. O promotor os acusou pelo desaparecimento, morte e tortura de mais de 30 mil pessoas. E isso sem a ajuda da polícia, que se recusou a apoiá-lo.
Argentina, 1985, reconstitui com grande detalhismo esse momento histórico, trazendo, inclusive, imagens documentais, mas vai além.
Havia, em vários setores da sociedade argentina, o temor de que os militares, ao se sentirem acuados, tentassem um novo golpe. O país vivia mergulhado em um constante clima de incerteza e ameaça. Por conta disso, Strassera se cercou de uma equipe de advogados jovens e idealistas, sob o comando de Luis Moreno Ocampo (Peter Lanzani), filho de uma família tradicional de Buenos Aires, com fortes laços, inclusive sanguíneos, com as Forças Armadas.
Após o julgamento das juntas, Ocampo se tornaria promotor da Corte Penal Internacional.
A equipe liderada por Strassera trabalhou com documentação que já havia sido reunida pela Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (Conadep). A base foram relatos de vítimas da ditadura militar, ou de seus parentes. Vale ressaltar aqui que tanto o Conadep quanto o julgamento das Juntas Militares foram iniciativas de Raúl Alfonsin, primeiro presidente argentino civil do período democrático.
Àquela época, a população argentina já tinha alguma noção de que o regime havia cometido “excessos” no combate a forças subversivas, resistentes à ditadura. Muito poucos, no entanto, tinham conhecimento das atrocidades perpetradas pelos militares.
O julgamento, por ter sido transmitido pelo rádio e amplamente coberto pela imprensa, teve imenso impacto sobre a opinião pública, que até então permanecia, em certa medida, favorável à ditadura. Via o período como um mal necessário na luta contra o comunismo, em um cenário não muito diferente do que ocorreu no Brasil.
O julgamento colocou, lado a lado, no banco dos réus, todos os altos comandantes das Forças Armadas.
Argentina, 1985 reconstitui com grande detalhismo esse momento histórico, trazendo, inclusive, imagens documentais, mas vai além. O roteiro, muito bem alinhavado, não se limita a retratar Strassera e Ocampo como figuras públicas. O filme também se ocupa da dimensão privada de suas vidas, os humanizando.
São particularmente inspiradas, reveladoras mesmo, as sequências do promotor com sua esposa, Silvia (Alejandra Fleshner) e seus filhos adolescentes – a dinâmica familiar, doméstica, dos Strassera se reflete muito em sua postura durante o processo do julgamento. Assim como a relação de Ocampo com sua mãe conservadora, que frequentava a missa na mesma igreja que o presidente militar Jorge Videla, condenado à prisão perpétua no julgamento das Juntas.
Argentina, 1985 é um daqueles filmes ao qual todos nós, latino-americanos, deveríamos assistir para melhor compreender o passado e, assim, evitar que seus erros sejam cometidos novamente.
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