A filmografia do cineasta norte-americano Darren Aronofsky tem um traço quase inescapável. Seja nas tramas mais surrealistas ou simbólicas, como Cisne Negro, Mãe! e Réquiem para um Sonho, ou nas mais realistas, como O Lutador e A Baleia, longa-metragem que acaba estrear nos cinemas brasileiros, o diretor sempre volta a sua câmera para dramas envolvendo personagens limítrofes, à beira do abismo.
Charlie, protagonista de A Baleia, é abissal em sua essência. Professor universitário, ele ministra on-line suas aulas de Literatura sempre com a câmera fechada, alegando problemas técnicos. Mentira. Ele não quer que seus estudantes vejam que ele é obeso mórbido e está morrendo. Mas o filme de Aronofsky não é (apenas) sobre isso.
Baseado na peça teatral homônima de Samuel D. Hunter, que também assina o roteiro, A Baleia faz da obesidade de seu protagonista uma metáfora física para discutir um outro tipo de peso, emocional: o do passado. Charlie (Brendan Fraser) foi casado com Mary (Samantha Morton, de Poucas e Boas) e é pai da adolescente Ellie (Sadie Sink, da série Stranger Things), que ele não viu crescer.
Ao se apaixonar por um estudante, Charlie abandonou a família para viver esse amor, que terminou de forma trágica, devastadora. Como foi impedido pela mulher de continuar tendo contato com a filha, o professor viu-se completamente só. Todas essas perdas tornaram-se gatilhos para a obesidade, que fizeram de seu corpo uma espécie de prisão e o condenaram à imobilidade. Toda a ação de A Baleia se passa, assim, no interior apartamento do protagonista, do qual ele não sai mais.
A narrativa de A Baleia, apesar de preservar em grande parte sua estrutura teatral, sustentada pelos diálogos, todos fortes, quase sempre doloridos, não abre mão do cinematográfico.
É evidente a origem teatral do filme, costurado por longas cenas, nas quais Charlie trava duelos verbais com seus poucos visitantes. A mais presente é a enfermeira e amiga Liz (Hong Chau, indicada ao Oscar de melhor atriz coadjuvante).
Ela é, para ele, o único contato externo com o mundo, alguém que além de tentar ajudá-lo com assuntos de saúde, serve também de proteção e alerta. Outro visitante, este um tanto aleatório, é o jovem missionário Thomas (Ty Simpkins, de Jurassic World: O Mundo dos Dinossauros), que acredita ser capaz de salvar o professor por meio da palavra divina.
Por fim, Charlie recebe Ellie, que, enfrenta dificuldades em terminar o ensino médio, e guarda pelo pai profundo ressentimento, afinal ele partiu de sua vida quando ela tinha apenas 8 anos. Ele insiste em querer se aproximar da filha, nem que seja em troca de dinheiro e favores – ela espera que o pai reescreva seus trabalhos escolares.
A narrativa de A Baleia, apesar de preservar em grande parte sua estrutura teatral, sustentada pelos diálogos, todos fortes, quase sempre doloridos, não abre mão do cinematográfico. A câmera de Aronofsky não é estática e se apropria muito bem do limitado espaço físico do apartamento de Charlie como se fosse extensão do personagem, nos fornecendo pistas tanto sobre a subjetividade do protagonista, de sua vida e seus segredos.
Mas no centro de A Baleia está mesmo a imensidão física e emocional de Charlie, personagem que já mudou a vida e a carreira de Brendan Fraser. Ele já teve picos de popularidade (sobretudo na franquia A Múmia), esteve em alguns filmes interessantes, como Deuses e Monstros (ao lado de Ian McKellen) e Crash – Sem Limites, mas nos últimos anos estava em certo ostracismo.
Favorito ao Oscar de melhor ator, Fraser consegue trazer ao personagem tanto o grotesco (tão caro a Aronofski) quanto o sensível, não de forma compensatória, mas contrastante. É um daqueles personagens que podem mesmo mudar a vida de seu intérprete, e não apenas porque ele teve de ganhar 100 quilos para vivê-lo.
Vale lembrar aqui que A Baleia se refere ao romance Moby Dick, clássico da literatura norte-americana de Herman Melville, com o qual o filme mantém um diálogo intertextual. É um filme pequeno, incômodo, sobre redenção, sobre um homem que, apesar de tudo, deseja sair do abismo.
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