Os irmãos Ethan e Joel Coen, desde seus primeiros filmes, têm como um dos traços fundamentais de sua hoje extensa obra o intenso diálogo com o cinema de gênero, indo da homenagem à subversão em questão de minutos. Não fazem, contudo, pastiche, meras colagens exibicionistas de referências, embora a dupla demonstre ter um repertório invejável delas.
Em seu mais recente projeto, A Balada de Buster Scruggs, vencedor do prêmio de melhor roteiro no último Festival de Veneza e realizado em uma parceria com o canal de streaming Netflix, onde já pode ser assistido, eles revisitam o western, mítico território hollywoodiano no qual já haviam colocado os pés no ótimo Bravura Indômita, em 2010.
O longa-metragem, um dos grandes filmes de 2018, funciona como um livro de contos, que ganha imagem e ação em seis histórias independentes que, juntas, conduzem o espectador a um Velho Oeste ao mesmo tempo espetacular, captado em grandes planos abertos à la John Ford (de No Tempo das Diligências e Rastros de Ódio), e muito intimista. Apesar de as tramas serem muito boas, o foco dos Coen são os personagens e seus dilemas existenciais, que conduzem as tramas.
A exuberância das paisagens, a vastidão geográfica do Oeste norte-americano no século 19, ainda por ser desbravada, entra por vezes em choque com a mesquinharia da natureza humana, à medida em que a tipografia do papel, a palavra escrita, se torna cinema em A Balada de Buster Scruggs, que se inicia com a história que tem como protagonista o personagem-título do longa, vivido por Tim Blake Nelson, um habitué da filmografia dos irmãos cineastas.
Com um chapéu branco, que no western clássico costumava caracterizar o caubói virtuoso, do bem, Billy é paródico: hábil pistoleiro, é também vaidoso, quase beirando a arrogância, e se julga invencível, quase um mito no universo do faroeste. Ele se oferece à câmera, e ao público que o assiste, dentro e fora da tela, quebrando a quarta parede, em prosa e versos, às vezes entoado sob a forma de canção. É um herói anti-heroico, recorrente no cinema dos Coen.
As histórias seguintes reforçam esse intento de explorar o gênero western por estradas secundárias, vicinais, em narrativas surpreendentes, alinhavadas com esmero. Um das mais impactantes é a terceira, “Meal Ticket”, estrelada por Liam Neeson, quase irreconhecível no papel de um velhaco ardiloso que explora um ator (vivido por Harry Melling, da saga Harry Potter) sem braços e pernas, atração de seu freak show itinerante. O episódio é crudelíssimo.
As histórias seguintes reforçam esse intento de explorar o gênero western por estradas secundárias, vicinais, em narrativas surpreendentes, alinhavadas com esmero.
O também cantor Tom Waits (de Ironweed) brilha no quarto episódio, “All Gold Canyon”, cuja busca gananciosa por ouro, metal precioso que serviu de mola propulsora para a conquista do Oeste, contrasta com a idílica paisagem natural retratada com maestria pelo diretor de fotografia francês Bruno Delbonnnel (de O Fabuloso Destino de Amélie Poulain).
Em “That Girl Who Got Rettled”, a excelente Zoe Kazan (de Doentes de Amor) vive uma jovem que viaja em um comboio puxado por bois rumo ao Oregon, na expectativa de casar-se com um homem que jamais viu. Na travessia, o destino lhe traz a possibilidade de encontrar amor verdadeiro, mas também a violência incontrolável que está sempre à espreita tanto no Velho Oeste quanto no cinema dos irmãos Coen, que venceram os Oscars de melhor filme e direção com o grande Onde os Fracos Não têm Vez (2007), uma releitura contemporânea desse mesmo território ético e estético onde A Balada de Buster Scruggs também brilha feito ouro de bandido.
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