Consta na Bíblia: Jesus Cristo é conduzido até Pôncio Pilatos para ser julgado. O governador romano não encontra nenhum crime nas atitudes daquele que é considerado por muitos o Filho de Deus. Como era costume dar liberdade a um prisioneiro na Páscoa e tentando não levar a culpa por condenar um inocente, Pôncio Pilatos manda trazer Barrabás e lança o julgamento para a multidão, que não deixa dúvidas: pede para soltar Barrabás e crucificar Jesus.
Isso é que o está na Bíblia, ou seja, sabe-se pouca coisa sobre quem é Barrabás, afinal, e o que fez. A partir dessa carência de informações, o filme russo Barrabás (2019) busca estender a narrativa. E, para isso, baseia-se na imaginação. O que a obra dirigida por Evgeniy Emelin lança para os espectadores, então, é uma costura entre aquilo que os leitores da Bíblia encontram e aquilo que é fruto da liberdade criativa de roteirista.
Um Barrabás (Pavel Kraynov) racional e angustiado pelo remorso. Um Pôncio Pilatos carcomido pela culpa. Uma irmã de Judas Iscariotes que não aceita a morte do irmão. Um José e uma Maria mergulhados na discrição. Um papel de destaque ao rei mago Melchior. Eis algumas pinceladas do que o exercício de criatividade capitaneado por Evgeniy Emelin entregará.
Mesmo que não seja a intenção, o filme permite que, nas entrelinhas, nasça uma provocação de revisão de conceitos para quem defende que religião e política estão longe de manter qualquer relação. A política, como ciência do governo dos povos e organização dos Estados, está ligada também ao surgimento das religiões. O que não é diferente quando o assunto é “primórdios do cristianismo”. Tanto Barrabás quanto Jesus foram acusados de traição contra Roma. “Testemunhas juram que ele se opõe ao pagamento de tributos a César”, acusa o sumo sacerdote Caifás, diante de um Pilatos reticente para condenar um Jesus cujo rosto praticamente nunca aparece.
Assim como o rosto de Jesus praticamente nunca aparece nesta versão cinematográfica, suas atitudes como provocadoras de rachaduras nos pilares de um modo de encarar a vida em sociedade estão apenas implícitas no roteiro.
A história de Jesus Cristo é profundamente vista pelo olhar da fé por milhões, sim, mas não se pode negar as implicações políticas que seu estilo de vida continha. Que o digam sua defesa dos mais desprezados, suas palavras duras contra alguns religiosos, sua revolta contra o uso do templo para o comércio, sua atitude diante de uma mulher considerada (muito!) pecadora, o abalo às estruturas do sistema que o seu comportamento como um todo provocava.
Assim como o rosto de Jesus praticamente nunca aparece nesta versão cinematográfica, suas atitudes como provocadoras de rachaduras nos pilares de um modo de encarar a vida em sociedade estão apenas implícitas no roteiro. Mais especificamente no episódio de sua condenação, que é o desfecho de todo o seu estilo de vida rebelde para os padrões da época. Seu rosto e sua história apenas aparecem de relance porque o astro aqui, afinal, é Barrabás. Mas acompanhar a uma versão da história de Jesus Cristo, mesmo que de forma indireta, é sempre acompanhar uma história de luta e defesa dos menos favorecidos e desprezados. Doa a quem doer. Seja com olhar religioso ou humano. A construção do destino do protagonista apenas confirma isso tudo, como uma relativização (poética) da ideia de que “bandido bom é bandido morto”.