A arte, quando tem uma agenda prévia, pode derrapar na curva das boas intenções e perder o seu impacto: a mensagem muitas vezes se sobrepõe à obra em si. Portanto, foi com um misto de curiosidade e desconfiança que assisti ao drama chinês Better Days, produção realizada em Hong Kong que disputa neste ano o Oscar de melhor filme internacional., depois de vencer inúmeros prêmios na China e no resto Ásia.
Antes mesmo que a trama inicie, ficamos sabendo, por meio de um letreiro, tratar-se de um longa-metragem de denúncia contra o bullying, tema nevrálgico na contemporaneidade. Talvez tivesse sido melhor ficar sabendo disso ao fim da projeção, mas, por fim, isso não revela ser um problema: o filme é muito bom.
O enredo se desenrola, em grande parte, dentro dos muros da escola, mas não apenas. Tudo tem início em uma sala de aula, quando uma professora de Inglês pergunta a uma turma de adolescentes qual a diferença entre used to be e was. Estamos em um colégio na Hong Kong dos dias atuais, onde a língua inglesa é um segundo idioma importante. A tutora explica que, apesar de as duas formas do verbo to be (ser/estar) sejam quase idênticas, há uma diferença fundamental entre elas. Used to be (costumava ser) sugere a perda de algo que deixou de ser. É um passado com melancolia.
Há uma ironia, descobriremos mais tarde, na frase que a professora, Chen Nian (Zhou Dongyu, excepcional) ensina aos alunos: This used to be a playground, em relação ao pátio da escola. Daquele lugar ela não guarda qualquer nostalgia
Better Days parte de um romance para adolescentes de Jiuyue Xi, inspirado em uma história real, e narra a atribulada jornada da personagem central, que se tornou professora. No equivalente ao ensino médio brasileiro, Chen Nian, uma garota de origem humilde, filha de uma mulher instável, foi vítima de recorrentes atos de bullying na escola, por parte de colegas de turma, uma realidade infeliz e muito comum no panorama académico de Hong Kong. Sua história tem como ponto de partida o suicídio de uma amiga, também alvo constante de abusos.
A tragédia acontece em pleno período de aulas, com a instituição cheia de alunos. Enquanto Chen Nian fica chocada com o ocorrido, a maior parte dos estudantes está mais interessada em fotografar e filmar o corpo da garota com seus celulares. O fato de ter demonstrado solidariedade pela colega morta e ter sido convocada pela diretoria de escola desencadeia uma onda ainda mais feroz de bullying contra ela.
Assim como o coreano Parasita, vencedor dos Oscar de melhor filme e melhor filme internacional no ano passado, Better Days lança um olhar cruel em direção ao desequilíbrio social e à acirrada competitividade nas sociedades asiáticas contemporâneas…
A violência sofrida por Chen Nien está diretamente ligada à sua condição social: ela mora na periferia de Hong Kong, tem pouco dinheiro e os colegas descobrem que a mãe dela enfrenta problemas com a Justiça. Para piorar, a garota é uma aluna aplicada, com notas altas, e arrisca lhes tirar a vaga nas universidades mais competitivas. Em muito pouco tempo, Nien torna-se vítima constante do todo tipo de abusos e, por não ter família, não há ninguém que a auxilie, nem autoridades escolares, nem a polícia. Ela está completamente só. Isso muda quando ela conhece Xiao Bei (Jackson Yee), jovem delinquente, com quem se identifica pelo viés da marginalidade. Há entre os dois um encontro de solidões e ele passa a protegê-la, como se fosse uma espécie de guarda-costas.
Assim como o coreano Parasita, vencedor dos Oscar de melhor filme e melhor filme internacional no ano passado, Better Days lança um olhar cruel em direção ao desequilíbrio social e à acirrada competitividade nas sociedades asiáticas contemporâneas, nas quais o acesso à tecnologia e à educação não são suficientes para reduzir o abismo entre classes, e evitar a marginalização e a violência.
Se inicia como um melodrama juvenil, quase folhetinesco, aos poucos a trama, à medida em que a violência contra Chen Nien escala, toma outros rumos, tornando-se muito mais sombrio.
O uso de cores e os enquadramentos também se transformam, sugerindo uma realidade subterrânea, em desalinho. O bom roteiro, não linear, nos conduz pela jornada infernal, mas sempre tocante, empreendida pelos protagonistas do impactante filme de Derek Tsang, que consegue ir além do formato “arte engajada”, e entregar um potente retrato da China contemporânea.
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