No livro Nu, de botas há um texto em que Antonio Prata fala sobre um dos grandes fascínios de qualquer pessoa que tenha sido um pirralho nos anos 80: ligar para o Bozo, o palhaço mais famoso do planeta. Na narrativa, a criançadinha aproveita a ausência dos pais e passa horas tentando a ligação até que, para espanto de todos, finalmente conseguem. Gritaria, comemoração, porra, é o Bozo! E mais do que isso, o palhaço diz que vai presenteá-los com uma bicicleta.
A alegria é imensa e só termina quando eles recebem a informação de que precisam passar o endereço para que a produção possa enviar o presente. Como assim, “endereço”? Qual o nome da rua em que eles moravam? Ninguém sabia e não tinha nenhum adulto por perto pra perguntar. Quem foi que disse que pra morar num lugar você é obrigado a saber nomes e números? Que coisa mais chata. Já era a bicicleta.
O filme Bingo: O Rei das Manhãs resgata com bastante precisão o espírito desta década ao nos apresentar uma história inspirada na vida de Arlindo Barreto, um dos atores que viveu o Bozo nas subversivas manhãs do SBT. Vários atores se revezaram por trás daquela maquiagem (até aquele cara que apresentava propaganda da Tele-Sena e que tacou fogo na própria cara no programa do Ratinho), mas sem dúvidas Barreto foi o sujeito que levou a vida mais inacreditável.
Fugindo do padrão Globo de biografias, o longa dirigido por Daniel Rezende (indicado ao Oscar de melhor montagem por Cidade de Deus) conta com uma narrativa que não é engessada, apresenta uma qualidade técnica pensada para o cinema (sei que isso é meio óbvio, mas são tantos os filmes com cara de programas de TV) e passa longe de ser chapa branca. Mesmo assim, é um filme que demonstra claro interesse em se comunicar com o grande público.
Drama e comédia se misturam em meio a piadas, sexo, doses de uísque e carreiras de cocaína. A dualidade do protagonista, um personagem fofo para as crianças versus um junkie vida louca no camarim, é demonstrada sem pudores.
O personagem Bingo (no filme, o nome do palhaço é alterado assim como o nome das pessoas da produção e das emissoras de TV) nasceu nos EUA, fez um sucesso estrondoso e virou um formato exportado para diversos países. Enquanto isso, em terras tupiniquins, o ator Augusto Mendes (Vladimir Brichta numa atuação que deveria lhe render alguns prêmios) faz sucesso estrelando pornochanchadas das mais vagabundas. Ele pretende sair dessa vida e após ser rejeitado por grandes figurões da TV Mundial (Rede Globo), resolve fazer teste pra uma novela xexelenta na emissora concorrente. Chegando lá, descobre que estão selecionando um ator brasileiro para viver Bingo e aí a mágica acontece.
Drama e comédia se misturam em meio a piadas, sexo, doses de uísque e carreiras de cocaína. A dualidade do protagonista, um personagem fofo para as crianças versus um junkie vida louca no camarim, é demonstrada sem pudores. E por falar em pudor, eis algo que os 80 abdicaram na cara dura. Pode fazer piada de cunho sexual em programa infantil? Pode. Pode humilhar uma criança chata ao vivo na frente das outras? Claro que sim. E que tal trazer a Gretchen pra rebolar seminua no meio das crianças, num programa matinal, só pra conseguir mais pontos de audiência? Vai fundo. Cara, que década deliciosamente absurda.
Um dos grandes trunfos de Rezende é saber trabalhar com a nostalgia sem necessariamente virar um escravo dela, tipo um filme de super-herói que precisa soltar trocentos easter eggs senão o trintão que mora com mãe vai xingar muito no Twitter. Se a gente percebe que o garotinho sentado no chão está calçando um kichute, ok, nosso coração se alegra e somos fisgados pela memória afetiva, mas o filme não força esses momentos e independe deles para fazer com que a gente se envolva com a história. Sutileza, essa é a palavra. O diretor consegue ser sutil ao tratar a respeito da vida de um personagem que pintava a cara pra mandar a sutileza à merda.
O aspecto técnico salta aos olhos, desde o figurino, passando pela direção de arte bastante eficiente em evocar o clima daquela época, até chegar aos planos-sequências mirabolantes que exploram uma maneira menos óbvia de se contar uma história. No mais impressionante deles, há não só uma mudança de cenário como também uma passagem de tempo.
Quando o diretor justapõe o filho solitário e o pai-palhaço que se diverte com o filho dos outros, há certa obviedade no discurso, embora este seja um elemento fundamental para entendermos os passos do protagonista rumo ao abismo. Contudo, momentos mais simplistas como esse acabam servindo de contraponto àqueles mais perturbadores e menos óbvios como aquele em que vemos o rosto do famoso palhaço se tornar assustador (num nível IT de aterrorizante) justamente num momento de triunfo, como se só através do ódio o ator anônimo conseguisse atravessar a maquiagem do famoso personagem e pudesse finalmente sentir o poder do sucesso.
Enfim, Bingo: O Rei das Manhãs é sobre a história hilária de um palhaço insano que tocava o foda-se num programa infantil, mas é também um filme que fala sobre estar num palco e ao mesmo tempo não ser notado, sobre alimentar a ambição na tentativa de preencher o vazio deixado por uma solidão devastadora.
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