Aos 80 anos, Woody Allen segue fazendo um filme por ano há décadas. Parece tratar-se quase de uma obsessão. Talvez se não insistisse nessa ideia fixa, realizasse trabalhos melhores, ainda mais consistentes. Mas, vendo por outro lado, é incrível como o diretor se mantém trazendo ao mundo obras que, entre altos e baixos, são quase sempre relevantes, instigantes em alguma medida: até seus tropeços têm algo a dizer, mesmo quando se repete. Não é exatamente o caso de Café Society, em cartaz desde a semana passada nos cinemas brasileiros. É seu melhor longa-metragem desde Blue Jasmine (2013).
Allen conta a história de Bobby (Jesse Eisenberg, com quem já rodou Para Roma, com Amor), um jovem judeu que, no filme, narrado pelo próprio cineasta, lhe serve como alter ego – inevitável não enxergar traços do cineasta no protagonista. O personagem sai do Bronx, Nova York, direto para Hollywood, em busca de um sonho dourado: quer trabalhar com o tio Phil (Steve Carell, de Foxcatcher: Uma História Que Chocou o Mundo), bem-sucedido agente de cinema.
Bobby pensa que, ao atravessar o país, deixará para trás a monotonia do seu cotidiano e viver uma vida plena de aventuras. E nada lhe parece mais certeiro que apostar na indústria de ilusões hollywoodiana, no auge do glamour entre as décadas de 1930 e 1940. Chegando a Los Angeles, no entanto, aos poucos percebe que pouco ou nada tem a ver com todo aquele ambiente de estrelas, frivolidades, jogos de poder e excentricidades.
Fora das telas, Allen sempre foi muito avesso à Costa Oeste, e nunca se encaixou muito na fogueira de vaidades da Meca do Cinema.
Em Hollywood, Bobby conhecerá Veronica, ou Vonnie (Kristen Stewart, em um de seus melhores desempenhos), a secretária do tio, que lhe servirá de guia pela cidade e, aos poucos, lhe cativará o coração, e retribuirá, em certa medida, o sentimento que por ela nutre. Ela pertence a uma linhagem de mulheres inteligentes, críticas, que povoam os longas de Allen. O exemplo maior é Annie Hall, vivida por Diane Keaton em Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (1977). Acontece que ela (é claro!) não é descomprometida. Tem um namorado secreto. E o romance entre Bobby e ela sofre um revés.
Desiludido, mas resoluto, Bobby retorna a Nova York (cidade do coração de Allen), onde gerenciará a boate do irmão, Ben (Corey Stoll, de Meia-Noite em Paris), um gângster consumado que usa o empreendimento para lavar dinheiro, sem que Bobby tenha completa noção da origem de suas atividades ilícitas. O clube se torna um sucesso, atraindo endinheirados que vão de artistas a aristocratas, passando por novos ricos, bandidos e celebridades. É o tal Café Society que dá título ao filme.
Como já fez em outros de seus filmes, mais notadamente o autobiográfico A Era do Rádio (1987), Allen traça um retrato muito saboroso e nem um pouco idealizado da família judaica de Bobby. Enquanto a mãe é deslumbrada com o sucesso do irmão, Phil, em Hollywood, o pai considera o cunhado um desnaturado, que renegou suas origens: “Não é um judeu!”.
Como já fez em outros de seus filmes, mais notadamente o autobiográfico A Era do Rádio (1987), Allen traça um retrato muito saboroso e nem um pouco idealizado da família judaica de Bobby.
Além de Ben, o irmão contraventor, Bobby tem uma irmã falastrona, sua confidente, casada com um intelectual comunista que ninguém na família leva a sério – mais uma agulhada de Allen. Esse painel é riquíssimo, repleto de autenticidade, e é um dos pontos fortes de Café Society.
Eisenberg se sai particularmente bem no papel de um jovem cuja inocência vai aos poucos se dissolvendo, mas sem dar lugar ao cinismo, e sim a um certo pragmatismo que o satisfaz, mas também o aprisiona. Ele enriquece, casa-se com outra mulher, também chamada Veronica, vivida por Blake Lively (de Águas Rasas). Ela é bela, doce, porém não tem a desafiadora aura de mistério de Vonnie, que encantava Bobby. Ele nunca conseguiu esquecê-la
Sem entregar uma das principais reviravoltas de Café Society, é preciso dizer que, em seu cerne, o filme discute questões existenciais importantes, como o dilema de se ter que escolher entre razão e sentimentos, e como o amor, a paixão, mesmo quando submetidos à racionalidade, e às forças do destino, pulsam forte, porque estão ligadas à uma essência mais profunda. E inescapável.
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