O diretor David Cronenberg não parece ser deste mundo e, caso seja, tem um olhar anômalo. Seu cinema é sempre atravessado pelos flagelos da humanidade, e muitos de seus filmes estão ligados diretamente ao que somos enquanto matéria, à corporalidade da existência, mais até do que a questões metafísicas. Crimes of the Future, novo longa-metragem do cineasta canadense que estreia nesta semana no Brasil, pertence a esse recorte, assim como Crash – Estranhos Prazeres e Gêmeos – Mórbida Semelhança.
Já na sequência de abertura de Crimes of the Future, esse Cronenberg, que estava há dez anos afastado da direção, nos coloca em estado de choque, revelando um menino que come um balde de plástico, para minutos depois ser morto, sufocado pela própria mãe, que não parece reconhecê-lo como rebento, mas, sim, como uma criatura que não merece estar no mundo por ter, de alguma forma, traído a natureza. Vamos descobrir por que ao longo do filme.
Em um tempo e uma geografia indeterminados, os seres humanos precisaram entrar em mutação para se adaptarem a um meio ambiente em que quase tudo tornou-se sintético. O corpo passa por transformações internas e a também gerar órgãos novos, sem que se saiba com precisão para que servem.
Em um tempo e uma geografia indeterminados, os seres humanos precisaram entrar em mutação para se adaptarem a um meio ambiente em que quase tudo tornou-se sintético.
Nesse nada admirável mundo novo e distópico, Saul (Viggo Mortensen, astro de muitos dos filmes mais recentes de Cronenberg) é um artista que ganhou celebridade por desenvolver em seu corpo órgãos estranhos, expostos em performances públicas de vanguarda.
Sua parceira artística é a ex-cirurgiã Caprice (Léa Seydoux, de Azul É a Cor Mais Quente), com quem também mantém um relacionamento de certa forma afetivo-erótico, já que como os próprios personagens constatam, a cirurgia é o novo sexo.
Saul também desperta o fascínio de Timlin (Kristen Stewart, de Spencer), agente oficial, responsável pelo registro de novos órgãos – o artista é um superstar nessa configuração de realidade.
Cronenberg, também autor do roteiro, discute em seu filme, uma projeção de futuro, questões muito contemporâneas, como a obsessão pelo corpo, pela aparência, e pela possibilidade de alterá-los por meio de procedimentos cirúrgicos estéticos, que podem ser mais ou menos invasivos.
Essa banalização se conecta a uma necessidade de constante adequação a padrões estabelecidos pela moda, mas, também, em uma camada mais profunda, a uma aproximação entre o biológico e o sintético, ao ponto de um poder absorver o outro.
Crimes of the Future proporciona ao espectador um clima claustrofóbico, em uma ambientação sombria, algo caótica, marcada pela sujeira e uma onipresente decadência, em que a obsessão pela estética, no decorrer do tempo, resultou em culto à deformidade e até à escatologia, uma das marcas do cinema de Cronenberg, no qual a maior fonte de terror não é o sobrenatural, mas sim o próprio corpo como campo de atravessamentos.
Há também no filme um forte viés político. Lang Lotrice (Scott Speedman, da série Felicity) lidera um grupo extremista de guerrilha que desenvolveu dependência física de produtos sintéticos, e se alimenta de barras, semelhantes às de proteína, só que de material não orgânico.
Acreditam que o futuro do ser humano é, por meio de sucessivas mutações, desenvolver de um sistema digestivo preparado para se alimentar de plástico. Cronenberg nos provoca, apresentando um futuro no qual tudo é artificial e nós deixaremos, enfim, de ser deste mundo.
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