Recentemente, publicamos uma reportagem aqui na Escotilha discutindo qual a importância e a responsabilidade da ficção quanto às imagens que carrega sobre os negros e sobre como isso ajuda a consolidar o racismo. Obviamente, os negros não são a única camada da população que foi estigmatizada por décadas de má representação em filmes, novelas e séries. O documentário Disclosure: ser trans em Hollywood (direção de Sam Feder) consegue esclarecer como outro grupo – as pessoas transexuais – foi trazido pela mídia em personagens e abordagens absolutamente negativos.
O filme é estarrecedor. Antes de assisti-lo, recomendo ao espectador fazer o seguinte exercício de memória: quais são os personagens trans (ou então pessoas trans que representam a si mesmas) que você lembra de ter visto na TV ou no cinema? No Brasil, talvez muitos lembrem das “transformistas” nos programas de Silvio Santos, da Roberta Close, do Thammy Gretchen. No cinema hollywoodiano, é provável que se pense em clássicos, como Psicose e Traídos pelo desejo, ou filmes mais recentes, como Clube de Compras Dallas ou A Garota Dinamarquesa. Em comum, os filmes trazem elementos que, se encarados com franqueza, têm um forte teor discriminatório: na maior parte das vezes, os personagens são enfocados como pessoas com problemas mentais (vide Norman Bates em Psicose e o Buffalo Bill, de O silêncio dos inocentes), que inevitavelmente são alvo de uma violência absurda (como em Meninos não choram), ou que causam nojo e repulsa.
E por que tudo isso é importante? Para responder isso, sugiro imaginar que você é uma pessoa que se sente desconfortável em seu próprio corpo e no gênero que foi designado a você. Você se sente mal, mas ainda não entende bem o porquê. Talvez você não seja a menina ou o menino que seus pais vestiram, instruíram, que a cultura tenta moldar. Você tenta procurar referências no mundo externo – perpassado, é claro, pelas mídias de massa – e o que você encontra é apenas violência, escárnio, ridicularização. Disclosure nos traz uma leitura riquíssima sobre este tema justamente ao entrevistar apenas pessoas trans que atuam nas indústrias midiáticas, este negócio ainda tão desrespeitoso às questões de gênero.
A comunidade trans sempre esteve lá, nos filmes que vimos ou nos programas que acompanhamos, mas quase sempre de uma forma absolutamente vil.
Dentre os entrevistados, há nomes proeminentes, como Laverne Cox (atriz de Orange is the new black), o ator Chaz Bono, a diretora Lilly Wachowski (da trilogia Matrix e Sense 8), Yance Ford (diretor, primeira pessoa trans a ser indicada ao Oscar) e Angelica Ross (estrela em temporadas de American Horror Story), dentre vários outros convidados. Juntos, eles conseguem tecer um horizonte que assusta, pois sempre esteve lá, sem que de fato nos déssemos conta: as pessoas trans sempre foram abordadas pela mídia de forma sensacionalista, o que envolve, inclusive, o fascínio – por isso, o mote de um momento da “revelação” (daí sai o nome do documentário) do “verdadeiro sexo” de um sujeito ser tantas vezes explorado no cinema e nas séries, bem como a liberdade de muitos entrevistadores ao perguntar sobre os genitais dessas pessoas.
A discussão, é claro, se mistura com a questão da representatividade – ou seja, da possibilidade que essas pessoas existam nas mídias -, mas vai além: de fato, a comunidade trans sempre esteve lá, nos filmes que vimos ou nos programas que acompanhamos, mas quase sempre de uma forma absolutamente vil. E outra constatação trazida pelos entrevistados: quase sempre, interpretar uma pessoa trans é razão para a premiação de um trabalho de um ator, mas obviamente esse intérprete é sempre uma pessoa cisgênero. Estão aí Hillary Swank (Oscar de melhor atriz em Meninos não choram) e Jared Leto (Oscar de melhor ator por Clube de Compras Dallas) para comprovar. O documentário deixa no ar a pergunta: qual a diferença entre isso e o chamado black face, que é quando pessoas brancas pintam a pele para atuar como negros? Por que – com raras e recentes exceções – as pessoas trans não são chamadas para interpretar a si mesmas?
São algumas das questões que pulam à mente após assistir a este documentário fundamental, que traz, ele mesmo, esperança de mudança, uma vez que há cada vez mais realizadores e artistas lutando por essa causa. Como diz no filme Laverne Cox, cuja voz reverbera muito como representante dessa comunidade: “por muito tempo, as maneiras pelas quais as pessoas trans foram representadas nas telas sugeriram que não somos reais, que estamos mentalmente doentes, que não existimos. Mas ainda estou aqui, estamos aqui, e sempre estivemos”. Disclosure traz a fé e a confiança de que existir na vida se torne sinônimo de existir de forma digna nas mídias.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.