Um dos aspectos mais fascinantes do gênero documentário é a sua heterogeneidade. A partir da premissa básica de um relato audiovisual não-ficcional que aborde a realidade, há muitas narrativas que podem ser construídas. Doleira: A História de Nelma Kodama, documentário da Netflix dirigido por João Wainer, provoca ao retratar, de maneira algo tresloucada e por livre vontade própria da protagonista, a história de uma criminosa.
Nelma Kodama, a mulher retratada, adquiriu fama principalmente às voltas da primeira leva de notícias da Lava Jato, quando tentava sair do país com 200 mil euros na calcinha. A doleira – que cresceu na cidade de Lins, no interior de São Paulo, onde se formou como dentista – foi a primeira mulher a ser presa na operação comandada pelo então juiz Sergio Moro.
Mas, diferente do que se poderia imaginar, ainda que fosse praticante de uma atividade ilícita (a troca de dinheiro brasileiro por dólar, sem qualquer prestação de contas à justiça, o que é um dos mecanismos mais usados para os crimes de colarinho branco), Nelma foi e está orgulhosa de tudo o que fez.
Eis aqui, pelo que vemos no filme de Wainer, uma verdadeira personagem caricata – só que da vida real. Logo no início, nos deparamos com uma Nelma arrumadíssima, portando vários itens de luxo, enquanto apresenta a sua casa e declara seu amor às marcas. Ao mesmo tempo, ela não esconde a tornozeleira eletrônica que passou a usar desde 2019, após receber indulto do seu caso.
Um documentário baseado em personagem
Em entrevista ao portal Poder 360, o diretor João Wainer explicou por que se interessou por Nelma: “ela não foi protagonista nos escândalos, mas uma personagem secundária. Isso dá a ela um ponto de vista muito privilegiado (…) a Nelma é diferente de todo mundo”. Ele tem toda razão: parecemos estar diante de um Joe Gould, uma pessoa naturalmente fascinante e muito hábil em controlar a própria narrativa, não importa qual seja a natureza dos seus atos.
É absolutamente impressionante a facilidade que Nelma Kodama parece ter para contar para as câmeras coisas íntimas e juridicamente irresponsáveis.
Com isso, quero dizer que é absolutamente impressionante a facilidade que Nelma Kodama parece ter para contar para as câmeras coisas íntimas e juridicamente irresponsáveis. Entre elas, estão detalhes sobre o funcionamento do seu esquema (que, em boa parte do tempo, funcionou na Galeria Pajé, na rua 25 de Março, em São Paulo) e indiscrições sobre suas paixões por certos homens (o grande destaque é o relacionamento com o doleiro Alberto Youssef, cujo romance com Nelma chegou a ser objeto de discussão dentro de uma CPI).
Mas, além de falar tudo isso, causa também espanto notar o quanto a vaidosa Nelma aceitou se expor. Se, por um lado, ela é retratada fazendo poses em roupas impecáveis dentro de seu apartamento, como se estivesse posando para uma revista, por outro, ela topou dar várias entrevistas para a produção enquanto estava encarcerada na Bahia. Com a mesma naturalidade, ela é mostrada sem qualquer glamour em um estereotipado traje laranja-presidiário-de-desenho-animado.
Uma possível pergunta seria: qual a validade de um documentário em que reina a vaidade do protagonista? Doleira: A História de Nelma Kodama escapa dessa armadilha usando duas estratégias: entrevistando especialistas sobre a Lava Jato (como os jornalistas Malu Gaspar e Fernando Rodrigues) e contextualizando a época dos “doleiros raiz”, em que o dinheiro brasileiro desvalorizava todos os dias e fazia sentido existir uma “profissão” que convertesse moeda nacional em dólar para que as pessoas tentassem guardar alguma coisa.
Inventivo, Doleira: A História de Nelma Kodama consegue concretizar uma façanha e tanto: informar sobre uma história de trapaça tipicamente brasileira, ao mesmo tempo que diverte com sua narrativa tresloucada. Vale conferir.
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