Poucos filmes são tão emblemáticos do tempo presente, das relações interpessoais e do homem com a tecnologia no século 21, quanto Ela (2013), longa-metragem que deu ao diretor norte-americano Spike Jonze (de Onde Vivem os Monstros) o Oscar de melhor roteiro original.
À sua maneira introspectiva e delicada, essa também incômoda alegoria pós-moderna desafia o espectador primeiro a sentir e, depois, a refletir sobre o significado da jornada emocional do protagonista Theodore Twombly (Joaquin Phoenix, contido e magistral), que, em certa medida, vivencia muitas das aflições e inquietudes da vida contemporânea. Impossível não nos enxergarmos um pouco (ou muito) nele.
O personagem vive em um futuro indeterminado, numa Los Angeles transfigurada, agora verticalizada por grandes arranha-céus, mas muito distante da cidade apocalíptica e sombria, tomada por máquinas, vista em clássicos da ficção científica como Blade Runner – O Caçador de Androides e O Exterminador do Futuro. Não deixa de ser uma distopia, porém bem mais sutil.
A vida de Theodore está em crise. Depois de passar por uma separação traumática, e indesejada, ele, aos poucos, vai se retirando do mundo, embora permaneça funcional: ganha a vida escrevendo cartas e mensagens, transformando em textos escritos em primeira pessoa emoções que não são suas. Tem poucos amigos e sua vida só volta a ganhar brilho quando encontra Samantha.
O personagem vive em um futuro indeterminado, numa Los Angeles transfigurada, agora verticalizada por grandes arranha-céus…
Ela é jovem, alegre, afetuosa e capaz de fazê-lo recuperar a vontade de levantar da cama e enfrentar o dia a dia. O problema é que Samantha não é uma mulher de carne e osso, mas um software comprado, um sistema operacional que, por ironia, o faz recobrar sua humanidade. Uma voz (da atriz Scarlet Johansson, que substituiu a da britânica Samantha Morton, depois de todo o filme rodado), que aos poucos vai ganhando subjetividade, na medida em que Theodore se apaixona.
Com um inventivo trabalho de direção de arte e figurinos, dentro de uma perspectiva de futuro algo retrô, como se pensado a partir de padrões estéticos dos anos 1970, Ela atesta não apenas o talento de Spike Jonze como cineasta, mas também como roteirista – vale lembrar que seus dois primeiros filmes, os aclamados Quero Ser John Malkovich e Adaptação, não foram escritos por ele. Têm a assinatura de Charlie Kaufman, vencedor do Oscar por Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, com o qual, coincidência ou não, Ela dialoga por também ser um híbrido de romance e ficção científica, propondo o uso de um dispositivo tecnológico para a resolução de problemas afetivos e existenciais.
Um filme sensorial (a trilha da banda Arcade Fire tem papel fundamental), que se apropria lentamente do espectador, para acompanhá-lo por muito tempo, Ela não discute se um dia as máquinas poderão pensar, mas se nós, recolhidos em nós mesmos, voltaremos a sentir.
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