O cinema de Quentin Tarantino é obsessivo, exuberante em suas intenções. Por mais que seus filmes transitem por assuntos na superfície bastante variados, indo do nazismo à escravidão nos Estados Unidos, passando pelo submundo do crime e pelo justiçamento a qualquer preço, o diretor e roteirista norte-americano discute em sua obra, fundamental e exaustivamente, outro tema, essencial à sua alma de criador: o cinema, sua história, gêneros e possibilidades narrativas, lhes prestando homenagem ou os subvertendo. Nesse aspecto, Era uma Vez em… Hollywood, em cartaz desde a última semana nos cinemas brasileiros, é exemplar.
Ao mesmo tempo cerebral e apaixonado, Tarantino, como de costume, brinca em seu nono longa-metragem com a percepção do espectador, sobretudo a do cinéfilo (como ele mesmo é), ao tomar como ponto de partida de sua trama um dos episódios mais trágicos já ocorridos na Meca do cinema, também conhecida, não sem alguma ironia, como a Cidade dos Sonhos: o assassinato, há 50 anos, em 9 de agosto de 1969, da atriz Sharon Tate, então grávida de oito meses do badalado cineasta polonês Roman Polanski (O Bebê de Rosemary).
A estrela e mais três amigos foram mortos brutalmente, na residência do casal em Los Angeles, por uma gangue liderada pelo maníaco Charles Manson. A chacina é considerada um divisor de águas na história da contracultura, simbolizando a perda definitiva de uma certa inocência romântica associada ao movimento hippie.
Sem entregar demais sobre o filme, é importante dizer que Era uma Vez em… Hollywood não pretende reconstituir os fatos em torno do crime. Muito pelo contrário: Tarantino se serve desses acontecimentos verídicos para em torno deles tecer uma trama ficcional intimamente conectada ao universo cinematográfico da época. Eventualmente, realidade e ficção confluem, criando o que podemos chamar de história virtual. “O que teria acontecido se…?” é a pergunta que mais se faz no jogo de simulacros forjado pelo diretor, que nos confunde de propósito até a última cena.
No centro do enredo desse novo filme está Rick Dalton (Leonardo DiCaprio, ótimo), ator cuja imagem está intimamente associada ao gênero western, em declínio no fim da década de 1960, em tempos de movimentos civis, contracultura e revolução sexual. Há algo de anacrônico na figura do caubói que ele encarnou por muitos anos em um seriado de televisão que acaba de ser cancelado e ele parece fora de lugar, uma sombra do que já foi.
Para manter-se “no ar”, ele vem aceitando sucessivas participações, sempre como vilão, em outros programas. Até que o produtor Marvin Schwarz (Al Pacino, em breve porém marcante participação) lhe sugere que aceite o convite para estrelar, na Europa, westerns spaghetti sob a direção de um diretor italiano que poderia muito bem ser Sergio Leone, um dos ídolos de Tarantino, mas não é. Mais um simulacro para nos “confundir”.
No centro do enredo desse novo filme está Rick Dalton (Leonardo DiCaprio, ótimo), ator cuja imagem está intimamente associada ao gênero western, em declínio no fim da década de 1960, em tempos de movimentos civis, contracultura e revolução sexual.
Dalton tem na vida uma cara metade: seu dublê Cliff Booth (Brad Pitt, impagável e desde já um dos favoritos ao Oscar de melhor ator coadjuvante), um tipo viril, silencioso, de pavio curto, mas com boas intenções e cheio de nuances que o tornam fascinante.
A dupla, inseparável em boa parte do filme, nos conduz em sua agridoce simbiose por uma jornada pelo Lado B de Hollywood, que vemos do lado de dentro, com menos glamour, mas não sem charme.
São festas, bares, premières de filmes, bastidores de filmagens, noites de bebedeira intensa. Tudo está ali, eviscerado, de forma algo cruel, mas também com certa ternura. Dalton e Booth, como boa parte dos protagonistas masculinos de Tarantino, são limítrofes, com um pé na vilania e o outro no heroísmo, sempre a um passo da canastrice, flertando com a decadência. Poucos no cinema americano escrevem tão bem esse tipo de personagem.
A casa de Dalton é vizinha à propriedade dos Polanski nas colinas de Los Angeles e essa proximidade geográfica faz realidade e ficção convergirem no roteiro de Era uma Vez em… Hollywood, que se peca por um certo excesso de cenas até chegar seu ápice, acaba entregando um desfecho sublime.
Sharon, vivida por uma luminosa Margot Robbie (de Eu, Tonya), é um enigma que não se desvenda no filme. Tarantino foi acusado no Festival de Cannes por negar-lhe mais falas, a mantendo tempo demais em silêncio, em um filme no qual os homens falam muito, como de costume nos filmes do diretor. Essa é uma meia verdade.
São de uma expressividade incrível, reveladora, as cenas em que a atriz vai sozinha ao cinema, assistir a si mesma na tela grande. Dizem tanto sobre ela que ela não precisa falar. A interpretação de Robbie é sutil, física, repleta de sensualidade, mas nunca desprovida de humanidade. Ainda assim, alimenta o mito, o mistério em torno de sua pessoa.
Visualmente arrebatador, Era uma Vez em… Hollywood nos transporta ao fim dos anos 60 em um espetáculo transbordante de imagens, sons, música (preste atenção na ótima trilha sonora!) e muitos diálogos, é claro. O cinema está em cada canto, nos trailers, vinhetas, programas de televisão, cartazes, pôsteres e cenas de filmes que nunca existiram, citações a todo tempo que constroem essa cidade dos sonhos, em cujo passado trágico Tarantino tenta intervir, e de alguma forma alterar.
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