Em seu primeiro filme, Fernanda Pessoa não trabalha com imagens captadas nos dias de hoje. Prefere voltar para o passado, rememorar um tempo perdido que poucos ousam revisitar e que muitos, inclusive, têm ojeriza.
Fazendo uso apenas de imagens de arquivo de filmes do período conhecido como “pornochanchada” no Brasil, a diretora delineia um recorte muito original de obras cinematográficas do período entre as décadas de 1970 e 1980 no Brasil — não tão coincidentemente, o mesmo período da ditadura militar, que durou até 1985.
As chanchadas não eram um fenômeno novo no Brasil. Ainda nos anos 1940 e 1950, quando o cinema norte-americano imperava sob o cinema nacional, muitas chanchadas fizeram sucesso, como Carnaval no Fogo (1949) e Nem Sansão nem Dalila (1952).
De fato, a palavra vem do italiano cianciatta, que costumava significar algo sem valor, ou sem credibilidade. Nos anos de chumbo do regime militar, enquanto o governo se preocupava com o intenso desenvolvimentismo, na tortura e perseguição ideológica, o cinema florescia com um novo gênero.
A comédia e o sexo das pornochanchadas tornam-se autocrítica e, quando expostas em outro tempo, revelam o que é indizível.
Não era a moral, muito em voga nos discursos dos governantes da época, que impediu as estórias cômicas e sem nenhum pudor do cinema retratado na época. Longe do palanque, o Brasil continuava acontecendo: seja no seu machismo exacerbado, seja na homofobia internalizada.
A figura da masculinidade no empresário, no investidor da Bolsa de Valores, no médico e no patrão era sempre uma constante nas obras da época. Já a mulher, um projeto que servia apenas de apoio, uma muleta que servia apenas para dar comédia à figura insólita do masculino.
Quando se abre uma janela para um passado não tão distante, é impossível não fazer as devidas conexões. Fernanda certamente sabia disso ao dirigir o filme — não à toa, fez antes uma extensa pesquisa com pelo menos cem títulos antes de escolher destes os trinta que mais simbolizavam o período.Cada um dá o que tem (1975), Corpo devasso (1980), Nos embalos de Ipanema (1978) e Histórias que nossas babás não contavam (1979) são apenas alguns desses longa-metragens.
Mesmo tendo sido por muito tempo considerado (inclusive pelos próprios críticos de cinema) como um gênero alienador, que exalava o sexismo e o preconceito, é inegável dizer que os filmes do período retratavam de maneira exímia a cultura do brasileiro. Num período bastante conturbado socialmente, revisitar os filmes que Pessoa coloca na tela não apenas explica como chegamos até aqui — mas também como pouco evoluímos. A comédia e o sexo tornam-se autocrítica e, quando expostas em outro tempo, revelam o que é indizível.
Um dos grandes méritos de Histórias que o nosso cinema (não) contava é, sem dúvida nenhuma, a montagem de Luiz Cruz que revela uma genialidade em conectar frases de filmes esparsos e criar sentido. Longe da crítica pela crítica, resta uma questão: não é preciso procurar muito para achar mulheres hiperssexualizadas ou homens homossexuais caricatos servindo de alívio cômico em grandes produções nacionais. Ao que cabe o conteúdo do que vê é apenas do espectador, mas a estória certamente continua a mesma.
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