Poucos artistas na história cultural brasileira atravessaram tantas décadas com a vitalidade criativa de Ney Matogrosso. Nascido em 1º de agosto de 1941, em Bela Vista, no Mato Grosso do Sul, Ney se consolidou como uma das figuras mais radicais e inventivas da música popular brasileira. Ex-integrante do grupo Secos & Molhados, que revolucionou a cena musical nos anos 1970 ao unir sonoridade híbrida e performances andróginas em plena Ditadura Militar, Ney construiu uma trajetória marcada pela recusa a convenções estéticas, de gênero e políticas. É esta complexidade indomável que Homem com H, cinebiografia dirigida por Esmir Filho, se propõe a explorar, fugindo das armadilhas da simples glorificação para captar a pulsação existencial e artística do cantor.
Longe de adotar um formato convencional de narrativa linear, o filme aposta numa abordagem sensorial e impressionista. Esmir Filho, também responsável pelo roteiro, fragmenta o tempo e a memória para dar corpo a uma experiência subjetiva, que se aproxima mais da fluidez de um sonho do que da rigidez de um relato factual. A escolha estética reflete o espírito de Ney Matogrosso: um artista que, desde o início de sua carreira, resistiu a classificações simplistas e fez do hibridismo e da constante reinvenção suas marcas.
Jesuíta Barbosa, no papel de Ney, realiza um trabalho notável ao capturar não apenas os traços exteriores do artista — sua voz aguda e controlada, seus gestos estudadamente sensuais, seu olhar desafiador —, mas também sua dimensão mais íntima e vulnerável. O ator constrói uma performance que não pretende “imitar” Ney, mas, antes, dialogar com as forças internas que sempre moveram o artista: o desejo, a solidão, o medo e a coragem.
Jesuíta Barbosa, no papel de Ney, realiza um trabalho notável ao capturar não apenas os traços exteriores do artista, mas também sua dimensão mais íntima e vulnerável.
O filme investiga as raízes desse ser multifacetado. A infância de Ney, dominada pela disciplina militar imposta por seu pai, Antônio Matogrosso, é retratada como um espaço de repressão e silenciamento. Ainda jovem, Ney rompe com esse ambiente, iniciando um processo de autoafirmação que passa pela mudança para Brasília e, posteriormente, para o Rio de Janeiro, onde sua trajetória artística realmente começa a se desenhar. Antes da fama, Ney trabalhou como enfermeiro, e essa experiência com o corpo — a dor, a fragilidade, o cuidado — parece ter formado, em parte, sua maneira de encenar o próprio corpo como ferramenta de expressão e resistência.
Essa dimensão política é central em Homem com H, mas nunca tratada de forma explícita ou panfletária. Ney Matogrosso, ao subir ao palco pintado, de roupas colantes e gestualidades feminilizadas, encarnava uma afronta direta às normas de gênero e ao autoritarismo do regime militar. Mais do que discursar, Ney operava uma insurgência estética e corporal que se tornava, em si, um ato político. O filme entende essa insurgência como imanente ao seu projeto artístico: Ney não precisava anunciar resistência; ele a vivia em cada respiração performática.
Visualmente, a fotografia de Azul Serra constrói esse embate entre opressão e liberdade por meio de uma paleta de cores saturadas e contrastes de luz que ora comprimem, ora expandem os espaços dramáticos. A direção de arte de Thales Junqueira, longe de recorrer à simples reconstituição de época, investe na criação de ambientes oníricos que refletem o estado emocional do protagonista — o peso da infância autoritária, a explosão criativa da juventude, a dor contida diante da perda.
A narrativa também se debruça sobre as cicatrizes deixadas pela epidemia de HIV, que atingiu duramente a comunidade LGBTQIA+ nos anos 1980 e 1990, da qual Ney sempre foi uma referência de visibilidade e resistência. O tratamento do tema é sóbrio e respeitoso, evitando o melodrama e sublinhando a decisão de Ney — soropositivo e sobrevivente — de seguir criando e subvertendo expectativas em meio à tragédia.
Apesar de adotar alguns dispositivos típicos do gênero biográfico, Homem com H nunca se rende a uma visão monumental ou definitiva de seu personagem. Há espaço para o humor, para a melancolia, para a excentricidade e para a dúvida — elementos que compõem um retrato em permanente mutação, tal como o próprio Ney Matogrosso. Sua carreira solo, iniciada em 1975 após a dissolução dos Secos & Molhados, é um exemplo dessa inquietação: ora explorando o repertório popular, ora se entregando à experimentação mais radical, Ney sempre recusou a domesticação artística.
No fim, Homem com H é menos uma tentativa de explicar Ney Matogrosso do que de habitá-lo. O filme compreende que a grandeza de Ney está justamente em sua recusa a pertencer a categorias fechadas — seja no plano da arte, do gênero, da sexualidade ou da política. Trata-se de uma homenagem que respeita a indomabilidade de seu personagem, aceitando que Ney é, acima de tudo, movimento, transformação, desvio e criação incessante.
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