Vencedor do festival É Tudo Verdade em 2014, o documentário Homem Comum, de Carlos Nader, acompanha quase 20 anos da trajetória de um “homem qualquer”, escolhido aleatoriamente pelo cineasta quando iniciava um filme com caminhoneiros. O projeto tinha uma premissa curiosa: abordar motoristas em postos de gasolina e colocar a eles perguntas “metafísicas”, questionando-os sobre o sentido da vida, da morte, da proximidade entre a realidade e o sonho, entre outras inquietações universais. É deste modo que Nader chega a Nilson de Paula, personagem que, por uma série de decisões e fatalidades, acaba registrando ao longo de duas décadas.
Os caminhos percorridos distanciam o documentarista do projeto inicial – inspirado, em parte, por sua obsessão pelo filme dinamarquês A Palavra (Ordet, de 1955) – e o aproximam da vida, da trajetória e da derrocada de Nilson e sua família. Por ser caminhoneiro, Nilson ficava muito longe da mulher e de filha, e revela às câmeras de Nader os conflitos e anseios de uma classe trabalhadora que (sobre)vive como pode para pagar as contas que chegam, sacrificando parte de uma convivência familiar para prover o seu sustento. O melhor modo de perdurar a esta rotina é, justamente, escapar das questões metafísicas.
Mas, como parece querer mostrar o filme, todos os enigmas no mundo estão presentes no homem comum. A dor e o sonho habitam a vida do homem simples, e talvez não por acaso muitas das cenas enfoquem Nilson, sua mulher Jane e sua filha Liciane enquanto dormem, sonham e retornam ao espírito da inocência, do universo atrelado ao que é mais essencial. A vida caleja o homem, mas permanece nele aquilo que é mais comum – no sentido do que é compartilhado com toda a espécie humana.
Carlos Nader retoma a perspectiva de realizar um ‘metadocumentário’, que coloca sob questão o que significa, afinal, a expectativa de colocar o real em filme.
Como em outras de suas obras, Carlos Nader retoma a perspectiva de realizar um “metadocumentário”, que coloca sob questão o que significa, afinal, a expectativa de colocar o real em filme. Sob este olhar, aparenta-se de Santiago (2007), de João Moreira Salles, ao indagar-se (e aos seus personagens) o tempo todo sobre as razões pelas quais filma e o quão fidedigno é aquilo que a câmera registra. Por que, afinal, Nilson convida Nader para filmar o velório de Jane? Por que o documentarista começou o projeto com aquelas questões (pedantes, sob certo aspecto) que buscam o sentido da vida? (Para responder as questões a mim mesmo, fala na narrativa em off, em um lúcido exercício de autoanálise).
Todas estas são reflexões feitas por Homem Comum, que assumidamente transgride a tese de que o documentário seria naturalmente o formato mais apropriado para representar “a vida como ela é”. Assim, Nader experimenta estratégias no filme que deixam claro que há mais entre fato e ficção do que pode parecer aos incautos. Usa, sem parcimônia, de uma trilha sonora artificial que traz um clima de tensão ao longa. A narrativa é toda entrecortada com cenas do clássico A palavra, que conta a história de um homem, considerado louco pela família, que acredita que é Jesus Cristo e quer ressuscitar a cunhada (Nilson e sua família, inclusive, assistem ao filme dentro do filme). As fronteiras entre real e criação se perpassam no cinema documental – não por acaso, o caminhoneiro deita em um caixão e “atua” a própria morte, expondo um interessante jogo entre vida e representação.
Homem Comum, portanto, traz uma continuidade com um movimento atual entre os documentaristas que recontextualizam os limites dos filmes de não-ficção. Carlos Nader parece querer dizer com seu filme que assumir esta perspectiva de ficcionalização, das camadas existentes de artifício nas narrativas que pretendem reproduzir o mundo, é o modo mais honesto de, afinal, buscarmos a aproximação da verdade. Afinal, o cinema e a vida são coisas fatalmente divorciadas, mas que se oxigenam quando se aproximam. Em outras palavras, repetindo a frase muito simbólica proferida por Nader em Homem Comum: “a vida não tem botão de volta, não tem replay, mas os filmes têm”.
Comove, por fim, a enigmática sabedoria do homem simples, presente na fala de Nilson. Acometido de vários problemas de saúde, com baixa visão, viúvo e desconectado da filha, ele reflete sobre a vida levada até ali – como quem escreve um epitáfio – e se vê como um homem de extrema sorte, pois não sente dor e conseguiu tudo o que quis.
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