Poucas vezes o uso da intertextualidade pareceu fazer tanto sentido em uma obra literária do que em As Horas, que deu, em 1999, o Prêmio Pulitzer na categoria ficção ao escritor norte-americano Michael Cunningham. Por se tratar de um livro imerso em referências ao mundo das letras, muitos acreditavam que sua transposição para o cinema não daria certo, mas, em 2002, o belo e premiado filme homônimo do cineasta inglês Stephen Daldry (de Billy Elliot), oriundo dos palcos londrinos, superou as expectativas, conseguindo levar para a tela grande a fluidez da escrita de Cunningham.
Tanto o romance como o filme são construídos, narrativamente, em torno dos últimos dias da autora britânica Virgina Woolf, antes de seu suicídio, em 1941, aos 59 anos. Vivida no filme por Nicole Kidman, que ganhou o Oscar de melhor atriz por seu desempenho, a escritora se digladia com sua dor e um de seus livros mais importantes, Mrs. Dalloway (1925), marco da literatura moderna, serve de elemento comum a duas outras potentes histórias de mulheres, que se entrelaçam à da escritora.
Tanto o romance como o filme são construídos, narrativamente, em torno dos últimos dias da autora britânica Virgina Woolf, antes de seu suicídio, em 1941.
Laura Brown (Julianne Moore, estupenda) é uma dona de casa na Califórnia do pós-Segunda Guerra Mundial, mãe de um menino pequeno, presa a um casamento que a sufoca. Tudo que sonha fazer é fugir para um quarto de hotel, onde possa ler, sozinha, sua edição de Mrs. Dalloway,
A conexão do livro de Woolf à terceira personagem é ainda mais evidente, a começar pelo primeiro nome. Como a protagonista do romance, ela também se chama Clarissa e é interpretada por Meryl Streep. A personagem, bem-sucedida editora de Nova York e, exatamente como Mrs. Dalloway, está às voltas com os preparativos de uma festa, não para ricos e ilustres, como no romance de Woolf, mas em homenagem a seu grande amigo Richard (Ed Harris), poeta famoso que está morrendo de Aids.
Assim como no romance de Cunningham, o bem alinhavado roteiro de David Hare (de O Leitor) faz com que as vidas de Laura e Clarissa convirjam com a de Virginia Woolf durante a celebração de Richard de forma avassaladora, em saltos temporais que atravessam o século 20, em uma narrativa em espiral. Muita dor permeia as três ações, encenadas com precisão por Daldry, ao som da inebriante trilha sonora de Philip Glass.
Hábil diretor de atores, Daldry, que também conduziu Kate Winslet ao Oscar de melhor atriz por O Leitor, faz de As Horas um raro caso de adaptação literária em que o filme está à altura da obra que o inspirou, extraindo de Kidman, Moore, Streep e Harris grandes atuações, entre as melhores de suas respectivas carreiras. Como Virginia Woolf e a perenidade de sua literatura, investiga os labirintos da subjetividade feminina.
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