Poucos clássicos da literatura até hoje chegaram às telas do cinema com o vigor e a complexidade que encontramos em suas páginas. O excelente e perturbador Ilusões Perdidas, adaptação do romance mais importante da “Comédia Humana”, conjunto de romances do escritor francês Honoré de Balzac, é uma honrosa exceção a essa regra.
Em duas horas e meia, muito bem medidas, o cineasta Xavier Giannoli (do premiado Marguerite) narra as aventuras e desventura de Lucien (Benjamin Voisin, de Verão de 85), um jovem aspirante a poeta provinciano que se muda para Paris com o sonho (ingênuo) de viver para a arte e o amor.
Amante de uma mulher mais velha, aristocrata casada, Lucien tem uma visão distorcida de si mesmo, superestimada. A começar pelo próprio sobrenome. Chardon por parte de pai, já falecido, ele assina seus escritos e se apresenta com Lucien de Rubempré – ele acredita que a partícula “de”, herdada da mãe, denota nobreza ancestral.
Acontece que apenas o rei da França pode autorizá-lo a utilizá-la e, assim, permitir que ele se eleve da incômoda posição de pequeno burguês interiorano.
É importante, aqui, compreender o contexto histórico em que a ação do longa-metragem, grande vencedor dos prêmios César (maior prêmio do cinema na França) neste ano, se desenvolva.
Ilusões Perdidas se passa no período da Restauração, entre a queda de Napoleão, em 1814, até a grande revolta de 1830. A velha monarquia, derrubada e guilhotinada pela Revolução de 1789, aqui de certa forma derrotada, volta ao poder restaurada e, para sobreviver, assume hábitos e valores burgueses.
Como ocorreu no Brasil do século 19, títulos aristocráticos não são mais herança de sangue, ou conquistados por serviços prestados no campo de batalha. O rei os outorga aos burgueses como moeda de troca pelo apoio e sustentação ao governo.
Estamos, portanto, falando, de uma época reacionária e regulada pelo capital, na qual fortunas se fazem e desfazem em um estalar de dedos e tudo se compra com dinheiro: fama, prestígio e reputação.
Por meio campanhas agenciadas pela imprensa, os limites entre a verdade e a mentira se tornam meros detalhes em ardilosos jogos de interesse. Portanto, as fake news não são uma invenção da contemporaneidade.
Estamos, portanto, falando, de uma época reacionária e regulada pelo capital, na qual fortunas se fazem e desfazem em um estalar de dedos e tudo se compra com dinheiro: fama, prestígio e reputação.
E nesse ambiente que Lucien vai mergulhar após ser abandonado por sua amante mecenas, Louise de Bargeton (Cécile de France). Para sobreviver, e tentar emergir da pobreza, ele deixa para trás suas pretensões literárias.
Nesse momento, começa a perder as tais ilusões que dão título à obra de Balzac, crítico ferrenho da imprensa, apesar de ter se sustentado graças a ela.
Para o escritor, o jornalismo que se fazia a sua época era sinônimo de degradação moral, de fraude, e, por isso, o apelidou de “o quarto poder”.
Durante a Restauração, surgiram os canards (patos, em francês), duvidosos jornais sensacionalistas, recheados de falsas notícias e textos opinativos nas mais diversas áreas, inclusiva na de crítica cultural, negociados como anúncios.
Tudo estava à venda. Esses periódicos eram resultados do progresso tecnológico que permitiu maior agilidade na área de impressão e foram produtos do progresso técnico, da impressão veloz. Tudo isso viabilizado pelo capital.
Lucien, em troca de seu “lugar ao sol”, escreve por dinheiro e prestígio opiniões sobre livros, peças de teatro e figuras políticas, entre outros assuntos. É um alter ego do próprio Balzac, que, a despeito de ser um dos maiores escritores da literatura francesa (e mundial) também se submeteu aos canards, escrevendo barbaridades, sob pseudônimos.
Publicado na imprensa da época no formato de folhetim, Ilusões Perdidas é, ao mesmo tempo, um produto desse tipo de jornalismo, personificado pelo empresário vivido pelo veterano Gérard Dépardieu, e uma obra crítica a ele. Já era fascinante em sua origem, portanto.
Nas mãos de um diretor habilidoso como Xavier Giannoli, a saga de Lucien faz lembrar Barry Lyndon, obra-prima de Stanley Kubrick que também ressona, com rigor estético e vigor narrativo, como fábula moral sobre o excesso de ambição. Ilusões Perdidas, a despeito de se passar no século 19, também fala sobre os tempos que vivemos, nos quais a verdade se tornou um mero detalhe.
VOCÊ CHEGOU ATÉ AQUI, QUE TAL CONSIDERAR SER NOSSO APOIADOR?
Jornalismo de qualidade tem preço, mas não pode ter limitações. Diferente de outros veículos, nosso conteúdo está disponível para leitura gratuita e sem restrições. Fazemos isso porque acreditamos que a informação deva ser livre.
Para continuar a existir, Escotilha precisa do seu incentivo através de nossa campanha de financiamento via assinatura recorrente. Você pode contribuir a partir de R$ 8,00 mensais. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.
Se preferir, faça uma contribuição pontual através de nosso PIX: pix@escotilha.com.br. Você pode fazer uma contribuição de qualquer valor – uma forma rápida e simples de demonstrar seu apoio ao nosso trabalho. Impulsione o trabalho de quem impulsiona a cultura. Muito obrigado.