O longa-metragem Jojo Rabbité um filme no fio da navalha. Entre o drama e a comédia, também flerta com a sátira e a paródia para discutir temas tabus: nazismo, guerra, antissemitismo e holocausto. Poderia dar muito errado, mas, a despeito de todos os riscos que corre ao pisar nesse território super minado, consegue triunfar. No último domingo seu diretor, o neozelandês de origem maori Taika Waititi (de Thor: Ragnarok), venceu um merecido Oscar de melhor roteiro adaptado pela inventiva transposição para a tela do livro Caging Skies, de Christine Leunens.
A originalidade de Jojo Rabbit não está, exatamente, na opção de retratar uma guerra, seja ela qual for, pela perspectiva de uma criança e de sua imaginação. Isso não é novo. Em 1952, o francês René Clément já fez isso, e magistralmente, no clássico Brinquedo Proibido, que mostra como uma menina que perde os pais em um ataque aéreo alemão durante a Segunda Guerra Mundial tenta absorver e compreender sua tragédia de maneira lúdica, por meio de sua amizade com um menino, filho de um fazendeiro pobre. Os dois “brincam” de guerra.
O trunfo maior do longa-metragem de Waititi é, sim, dar conta de transitar, com desenvoltura, entre diferentes gêneros, como o drama de guerra e a comédia oddball (excêntrica), sem tornar-se refém do exercício da forma e, assim, perder a sua verdade.
No centro de trama está Jojo (o adorável Roman Griffith Davis), um garoto alemão de 10 anos, integrante da Juventude Hitlerista, tão aficionado do ideário nazista que tem delírios de manter conversas com ninguém menos do que o próprio Adolf Hitler (vivido por Waititi, hilariante). O führer e tudo que ele representa estão de tal forma introjetados no imaginário do menino que todos os seus atos e decisões precisam ser legitimados por essa projeção do ditador que ele guarda dentro de si.
O führer e tudo que ele representa estão de tal forma introjetados no imaginário do menino que todos os seus atos e decisões precisam ser legitimados por essa projeção do ditador que ele guarda dentro de si.
Do ponto de vista psicanalítico, esse quadro dá panos para muitas mangas. Jojo não tem em casa uma figura paterna – o pai, que ele não vê há muito tempo, está, teoricamente, no campo de batalha na Itália, ao ponto de o garoto já não se lembrar muito bem dele. Hitler, portanto, emerge de seu inconsciente tanto como uma resposta aos estímulos ideológicos que recebe no meio em que está imerso quanto do vazio emocional que carrega dentro de si, apesar da presença da mãe, Rosie, vivida por uma Scarlett Johansson iluminada.
A atriz, indicada ao Oscar de melhor coadjuvante por seu desempenho, de certa forma encarna uma espécie de contraponto à rigidez e à desumanização representadas pelo nazismo na vida de Jojo. Ela é leve, musical, amorosa e também guarda segredos. Um deles é esconder na casa onde moram Elsa (Thomasin McZenzie, de O Rei), amiga de infância de Inga, irmã mais velha de Jojo que faleceu em circunstâncias nunca explicadas pelo filme.
Ao descobrir que Elsa se esconde atrás da parede do quarto da irmã morta, Jojo fica estarrecido: em sua cabeça, judeus são seres monstruosos e diabólicos, que devem ser extirpados da sociedade a qualquer custo. São o grande inimigo da Pátria. É o que Hitler lhe diz em sua cabeça. Mas a vida real começa a desmenti-lo.
Narrado em tom fabular, Jojo Rabbit foi rodado em locações na República Tcheca, e tem um desenho de produção (direção de arte e cenografia) primoroso, que se utiliza de cores básicas para simular a perspectiva do olhar infantil. O mesmo vale para os belos figurinos, que têm um pé na História, mas não são realistas. Os mais ortodoxos talvez se choquem na forma como temas tão graves são tratados em tom de brincadeira, quase satírico.
Detratores do filme alegam que há algo de leviano em tratar a guerra e suas atrocidades de forma tão, segundo eles, leviana, tornando-a, de alguma forma, mais palatável e quase “fofa”. Talvez seja. A ousadia de Waititi, que tem mãe judia (uma informação importante!), tem duas faces, é preciso dizer. Por optar pelo lúdico, as perdas e danos na vida de Jojo, despidas de todo seu potencial melodramático, tornam-se agridoces, talvez mais incômodas. Causam, sim, o riso, mas vêm acompanhadas, em seguida, de dor e esperança, em uma combinação inusitada, cheia de frescor, que segue em nossos sentidos durante horas após a projeção. E isso é valioso.
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