Os primeiros assinantes brasileiros de TV a cabo nos anos 1990 que zapeassem pelo canal Multishow provavelmente se deparariam com um programa de humor meio ofensivo, ao menos para os padrões da época. Era um show com esquetes isoladas em que cinco homens se revezavam em todos os papéis. No texto, um deboche a vários grupos: às donas de casa, aos pais de família, aos empresários, aos roqueiros, aos norte-americanos, aos canadenses, aos gays.
Mas, curiosamente, mesmo que a metralhadora se direcionasse a vários alvos, tratava-se de um programa que criava um tom afetuoso com o espectador. Os cinco comediantes eram, de alguma forma, simplesmente cool naquilo que estavam fazendo. E é isso que tornou os Kids in the Hall, uma trupe canadense de humor, em um dos grupos mais cultuados por comediantes de grande reputação.
É esta a história que é contada no documentário The Kids in the Hall: Comedy Punks, que está disponível na Amazon Prime. Ela faz jus ao legado destes comediantes (que recentemente se reuniram para uma nova temporada no mesmo Prime Video) e explica às novas gerações por que eles costumam ser sempre citados por cânones contemporâneos do humor – gente de peso como Mike Myers, Lauren Ash, Fred Armisen e Jay Baruchel.
O resultado é um filme tão engraçado quanto comovente que mostra a trajetória de cinco canadenses que conseguiram um feito incrível: atravessaram quarenta anos de trabalho em equipe e, mesmo tendo uma ou outra rusga (quase todas por conta do sucesso que obtiveram), continuam se amando. Mais do que isso, eles conseguiram consolidar um cânone no gênero, baseado na simplicidade e na iconoclastia (por isso a ideia dos “punks da comédia”), que segue influenciando muitos novos humoristas.
Quem são esses garotos?
Com muitas cenas inéditas ao público que os acompanhou na TV, The Kids in the Hall: Comedy Punks inicia apresentando o contexto que possibilitou que estes cinco amigos se conhecessem. A gênese do grupo, na verdade, está no teatro de improviso – o programa de televisão é apenas um detalhe de sua história. Em 1981, Mark McKinney e Bruce McCulloch se conheceram ao dividir o palco em Calgary. Enquanto isso, em 1982, David Foley e Kevin McDonald se juntavam em Toronto.
Os Kids in the Hall só nasceriam quando as duas duplas foram apresentadas e passaram a dividir um palco no clube Rivoli, em Toronto. Foi quando, em 1985, o ator Scott Thompson foi assistir a uma apresentação e ficou enlouquecido com o que viu. Passou a voltar todas as noites e logo receberia um convite para se juntar ao quarteto, que adquiria sua icônica formação definitiva.
Desde então, a trajetória deste grupo se desenhou entre altos e baixos, mas sem nunca deixar de ter o reconhecimento entre os pares como uma grande referência da comédia cult. Eles nunca se tornaram realmente grandiosos – no sentido de que os cinco comediantes nunca atingiram níveis estratosféricos de sucesso – mas, em um degrau mais underground, eles atravessaram décadas fazendo um humor curiosamente ofensivo e amável.
No documentário, Fred Armisten chega a declarar que os Kids in the Hall fizeram a comédia que refletiu a geração X – como se fossem a versão do grunge no humor. Já o canadense Mike Myers menciona que decidiu que era aquilo que queria fazer da vida quando viu a trupe se apresentando.
O fato de que eles nunca se tornaram mega estrelas de Hollywood não quer dizer que eles não foram catapultados ao sucesso. O salto na fama se deu quando eles chamaram a atenção de Lorne Michaels, o grande produtor de Saturday Night Live. Foi ele que trouxe a possibilidade que os Kids in the Hall gravassem um piloto de TV para a HBO, em 1989. Depois disso, foram cinco temporadas (o show depois migrou para a CBC) que rodaram o mundo.
Qual é a graça dos Kids in the Hall?
Além de apresentar toda a história do grupo, The Kids in the Hall: Comedy Punks também funciona como uma grande investigação sobre o tipo de humor que eles fazem, que transita por territórios difíceis de compreender por quem nunca assistiu ao programa. Por mais que muitos esquetes sejam explicitamente escrachados, há vários que são difíceis de esclarecer por que ainda se encaixariam dentro do gênero.
The Kids in the Hall: Comedy Punks funciona como uma grande investigação sobre o tipo de humor que eles fazem, que transita por territórios difíceis de compreender por quem nunca assistiu ao programa.
Basicamente, eles transpuseram para a TV esquetes de comédia com os personagens que criaram. Alguns se tornaram cults, como a Chicken Lady (uma mulher galinha personificada por Mark McKinney que tinha orgasmos e explodia em cena), uma criança negligenciada chamada Gavin (vivido por Bruce McCulloch) e, claro, o icônico Buddy Cole, um personagem gay vivido por Scott Thompson que fazia monólogos direcionados para a câmera em bares LGBTQIA+.
Buddy Cole, aliás, é um verdadeiro símbolo do que os KITH representaram e representam. Conforme discutido por Thompson em Comedy Punks, Buddy é possivelmente o primeiro homem abertamente gay e afeminado apresentado na TV e que lidava com isso de forma franca e orgulhosa. Isto permitia que temas pesados da época, como a AIDS, fossem trazidos à televisão de maneira humorada.
Para completar o pioneirismo trazido aqui, soma-se a isto que Scott Thompson também é gay, e representava esse e vários outros papéis em meio a um grupo com quatro homens heterossexuais que seguidamente atuavam como gays e mulheres de uma forma que nunca era jocosa (a mulher mais bela, segundo eles mesmos, era David Foley).
A riqueza dos esquetes de Kids in the Hall se dá também pelo fato de que o material das piadas vinha em boa parte da experiência pessoal de cada um deles com pais alcoólatras ou violentos. Isto deu margem para que criassem personagens que satirizavam os subúrbios canadenses, cujas vidas algo medíocres se assemelham muito aos recônditos das cidades pequenas em qualquer lugar do mundo.
O princípio, o fim e o princípio
As cinco temporadas de Kids in the Hall foram angariando cada vez mais sucesso e se tornando mais ambiciosas, a ponto de criarem disputas de ego entre os participantes. Em 1995, David Foley salta do barco e vai estrelar a série NewsRadio, da NBC. Quando os 5 kids topam fazer o longa-metragem Brain Candy em 1996, eles estão brigados e mal conseguem olhar na cara de David, gerando uma experiência horrível.
Mas esta não é uma história de final infeliz. Pelo contrário: ela fala de cinco amigos que se amam profundamente. E que mesmo que tenham seguido suas carreiras individuais (Mark McKinney, por exemplo, foi uma das estrelas de Superstore, e Kevin McDonald se tornou bem sucedido dublando animações), continuam unidos em um afeto que é muito evidente em Comedy Punks.
Isso, claro, para a sorte de seus fãs, que enxergam neles a possibilidade de que o espírito underground siga vivo e quebrando as expectativas do mainstream. Em uma entrevista durante os anos 2000, Scott Thompson definiu com muita clareza quem são os KITH. Ele disse: “nós imaginamos que seríamos o Nirvana, mas, na verdade, nós éramos o Sonic Youth”.
Ao concretizar o paradoxo de fazer humor para poucos e para todos, os Kids in the Hall seguem, por quatro décadas, sendo os verdadeiros punks da comédia.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Para continuar a existir, Escotilha precisa que você assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 8,00 mensais. Se preferir, pode enviar um PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.