Terror sobrenatural? Alegoria contemporânea sobre a condição feminina? Comédia subliminar a respeito da existência concreta do Mal? Ao sair, um tanto atordoado, de uma projeção em tela grande de Mãe!, novo longa-metragem do cineasta norte-americano Darren Aronofsky, o espectador, na melhor das hipóteses, ficará tentado não apenas a enquadrá-lo em alguma categoria que o ajude a compreender melhor o que acaba de ver. Também é provável que ele tente encontrar alguma explicação plausível para a trama, que, pelo menos ao meu ver, não pede uma elucidação lógica prêt-à-porter. O filme deve ser encarado como uma experiência estética em forma de obra aberta, senão está fadado a frustrar plateias mais conservadoras.
A julgar por sua filmografia, Aronofsky pode ser acusado de diversos pecados, menos o de ser acomodado. Ele é, acima de tudo, um artista inquieto, mas também pretensioso. Se é capaz de muitos acertos, como Pi, Réquiem para um Sonho, O Lutador e Cisne Negro, ele também pode cometer equívocos retumbantes, como Fonte da Vida. Este é, de longe, seu pior trabalho, um delírio egocêntrico sem pé nem cabeça, de certa forma aparentado com a viagem tresloucada que o diretor empreende em Mãe!, que dividiu a crítica no último Festival de Veneza e foi rejeitado com fervor pelo público nos Estados Unidos, onde estreou no fim de semana passado.
Como em ‘O Bebê de Rosemary’, a gravidez e a maternidade ocupam o centro da trama, apontando para uma possibilidade interessante de leitura do filme.
Aronofsky ousa homenagear, e dialogar, com O Bebê de Rosemary (1969), clássico absoluto do terror implícito assinado pelo diretor polonês Roman Polanski. Jennifer Lawrence (de O Lado Bom da Vida) faz o que pode pela protagonista, uma mulher apenas identificada como Mãe que, talvez literalmente, come o pão que o diabo amassou ao longo do filme. A personagem e o marido, vivido pelo ator espanhol Javier Bardem (de Onde os Fracos Não Têm Vez), se mudam para uma casa afastada e têm, aos poucos, sua vida virada do avesso com incessantes e inesperadas visitas que os tiram do eixo. Ele, que também não tem um nome, pode ter um pouco ou muito a ver com isso, dependendo de como se assiste ao longa.
Como em O Bebê de Rosemary, a gravidez e a maternidade ocupam o centro da trama, apontando para uma possibilidade interessante de leitura do filme. O papel de mãe, de certa forma, esconde por trás de sua fachada sublime uma violência latente gigantesca: a mulher, tanto para seu companheiro como para o mundo ao redor, muitas vezes tem sua identidade roubada ao ser reduzida à função reprodutiva. O senso comum dela exige um estado de felicidade suprema. Tanto no longa de Polanski quanto no de Aronofsky, esse momento é retratado como uma experiência infernal. Isso é corajoso.
Os ótimos Ed Harris (de Pollock) e Michelle Pfeiffer (Ligações Perigosas), assim como os vizinhos diabólicos de Rosemary (Mia Farrow) no clássico de Polanski, cumprem exemplarmente a função de representar, com seus personagens, tudo aquilo que é ameaçador, hostil, e está sempre à espreita em um mundo que nos cobra a felicidade suprema simbolizada pela família tradicional. Podem ser agentes satânicos? Talvez. Ou são gerados por um surto psicótico da protagonista? Outra possibilidade. O fato é que a personagem passa por verdadeiras torturas físicas e psicológicas impostas pelo roteiro algo frouxo de Aronofsky, que confessou ter escrito a primeira versão em apenas cinco dias. Apesar de algumas sequências tensas e intensas, trata-se de uma obra solta no ar. Provocativa, sem dúvida, mas imperfeita.
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