As distopias, seja na literatura ou no cinema, nascem de inquietações de seus criadores a respeito do estado de coisas no tempo presente. A concepção de futuro é moldada a partir de questões que borbulham e incomodam no espaço-tempo em que essas obras são produzidas.
Faz muito sentido, portanto, que Medida Provisória, primeiro longa-metragem de ficção dirigido pelo ator baiano Lázaro Ramos, venha à tona em um momento no qual o racismo estrutural se torna um tema urgente, que precisa ser debatido pela sociedade brasileira. O mito da democracia racial prova ser hoje uma miragem, o delírio de um passado de autoengano.
Baseado na peça teatral homônima de Aldri Anuniciação, Medida Provisória chega aos cinemas já cercado de polêmica. A tropa de choque do governo Bolsonaro, liderada pelo ex-secretário especial da Cultura, Mário Frias, e por Sérgio Camargo, ex-presidente da Fundação Cultural Palmares, foi às redes sociais acusar o filme de ser “mi-mi-mi” e uma “mentira” que estaria incitando o ódio e a divisão racial.
Sobrou até para Lázaro Ramos e sua mulher, a atriz Taís Araújo, uma das protagonistas do longa, acusados de viverem em berço esplêndido às custas de leis de incentivo. Sinal de que ficaram incomodados com a obra, que, de fato, é muito provocativa.
Distopia
Em um futuro não muito distante, porém não determinado, o Brasil atravessa, em Medida Provisória, um momento de tensão após a revogação de uma lei que dava aos descendentes de escravos o direito de serem indenizados pelo mal causado pelo Estado aos seus antepassados, sequestrados em suas terras de origem, transportados em condições desumanas às Américas, comercializados como animais e submetidos por toda a vida a péssimas condições de trabalho e existência, sem liberdade ou pagamento.
A suspensão desse direito faz com que os afrodescendentes brasileiros se revoltem e o governo responde a essa indignação primeiro com uma oferta insólita: todos os que se identificarem como negros receberão, de graça, passagens para irem à África, conhecer de perto a terra de seus ancestrais. Alguns se entusiasmam com o programa e outros desconfiam que há algo por trás – e há.
Pouco tempo depois, é baixada a Medida Provisória 1888, que determina a prisão e extradição imediata de todos os afro-brasileiros, em um projeto de branqueamento do país.
No centro da trama está o idealista advogado Antonio Rodrigues, vivido pelo ator britânico-brasileiro Alfred Enoch, conhecido como o personagem Dino Thomas da franquia Harry Potter e por sua participação na série How to Get Away with Murder.
Filho de uma médica brasileira e de um ator inglês, Enoch fala português com fluência e traz ao protagonista de Medida Provisória uma contida e bem-vinda intensidade. Antônio é um dos líderes de uma organização não-governamental que defende os direitos dos brasileiros de melanina acentuada, forma como negros passam a ser chamados nesse Brasil do futuro.
Diante da perda do direito à indenização, Antonio questiona as autoridades, sobretudo porque ele já percebe os primeiros sinais de que o racismo, antes muitas vezes velados, começa a ser legitimado pelos discursos oficiais. Vizinhos de prédio, colegas de trabalho e pessoas brancas nas ruas já o tratam diferente.
Embora resvale em alguns momentos em uma retórica de frases feitas e simplificadoras, que soam como palavras de ordem, Medida Provisória é um filme importante…
O advogado é casado com a médica Capitu (Tais Araújo) e tem um primo jornalista, também militante, chamado André (Seu Jorge). Eles moram juntos, no Rio de Janeiro, em um edifício de classe média da Zona Sul, onde começam a ser importunados por uma moradora, dona Izildinha (Renata Sorrah), legítima representante da classe dos “cidadãos de bem”, uma mulher passivo-agressiva que primeiro os provoca sutilmente, e depois, de forma mais evidente.
Outra personagem emblemática em Medida Provisória é Isabel (Adriana Esteves, em grande desempenho), alta funcionária do Ministério da Devolução dos brasileiros negros à África. Ela faz lembrar, com sua postura e cinismo, várias personagens do cenário político brasileiro contemporâneo, como as deputadas federais Bia Kicis e Carla Zambelli.
Tensão e humor
Embora resvale em alguns momentos em uma retórica de frases feitas, que soam como palavras de ordem, Medida Provisória é um filme importante porque é instigante e nos faz refletir sobre um tema do qual ainda fugimos como nação: o racismo estrutural, presente nos momentos mais cotidianos da nação.
A direção vigorosa de Lázaro Ramos, que demonstra saber exatamente aonde pretende chegar, e o bom roteiro, assinado por ele, Aldri Anunciação e Elísio Lopes, conseguem afastar o longa do tom meramente panfletário, adicionando doses de humor e ironia.
A trama distópica funciona – e muito bem – como thriller político, à medida em que a tensão cresce e a perseguição, de um lado, e a resistência, do outro, são acirradas – é genial a ideia da criação de um afro-bunker, versão moderna de um quilombo. Medida Provisória envolve e incomoda, mas é também sagaz e irônico, em sua assumida intenção de colocar o dedo na ferida racial do Brasil.
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