Assistir ao esperado Montage of Heck é receber uma passagem direta para os já longínquos anos 90. Nós, que vivemos esta época, podemos sentir o clima algo sombrio e melancólico do grunge, que se disseminou a partir da chuvosa Seattle e de uma América impactada pelas crises, pela Guerra do Golfo, pelo sentimento de desilusão que lá difundia, gerando repercussão pelo resto do mundo. É neste cenário em que Kurt Cobain, no início da década, se prenuncia (de forma absolutamente involuntária) como nome central de uma geração contaminada pela desesperança e pelo cansaço de si mesma.
Talvez esta atmosfera seja mais uma sensação reavivada para o espectador que lá esteve do que algo provocado pelo próprio filme, que se centraliza mais na figura de Kurt, elevado a ídolo eterno, em parte, pela sua morte precoce, aos 27 anos (curiosamente, a mesma idade com que morreram vários outros grandes nomes da música, como Janis Joplin, Jim Morrison, Jimi Hendrix e Amy Winehouse), e menos na evidenciação deste contexto.
O grande trunfo deste documentário – e é isso que o coloca prioritariamente como filme para os fãs – é a disponibilização de registros caseiros da vida de Kurt e Courtney no auge do sucesso da banda e do casal enquanto presença cativa no universo das celebridades.
Essas constatações servem para observar que, afinal, Montage of Heck encontra sua importância enquanto filme de fã, não tanto como documentário e menos ainda enquanto registro histórico de uma época.
A visão do diretor Brett Morgen e a de todos aqueles que prestam ali seus depoimentos estão vigorosamente contaminadas com as relações afetivas mantidas com Kurt Cobain, entendido desde bebezinho como um menino especial, “que atraía a todos como um imã” (como conta a mãe), “que não tinha noção que era mais bonito do que Brad Pitt” (como diz a mulher, Courtney Love).
As falas apaixonadas sobre Kurt e sua idealização acerca de seu futuro predestinado no universo da música negam, de certa forma, o timing do Nirvana e do álbum Nevermind (1991) ao darem voz à inquietude e aos desejos de uma geração, da mesma forma que aconteceu com Is this it, dos Strokes, dez anos depois.
Que fique claro que isto não é exatamente um problema. Dentro desta proposta de um registro produzido para os fãs, Montage of Heck funciona maravilhosamente bem. Brett Morgen teve acesso a um material riquíssimo, cedido pela viúva, com gravações feitas por Kurt, desenhos e anotações diversas em diários que produziu incessantemente ao longo da sua vida.
Para reproduzir estes conteúdos, as saídas encontradas por Morgen são bastante criativas: torna Kurt uma espécie de “narrador póstumo” da própria história, ao fazer uso de suas impressionantes gravações feitas em cassete; cria animações a partir de seus desenhos; produz versões infantis de algumas das músicas mais lúgubres do Nirvana; faz montagens com as incontáveis participações da banda na MTV. Usa a tecnologia ao seu favor.
Contudo, sem dúvida o grande trunfo deste documentário – e é isso que o coloca prioritariamente como filme para os fãs – é a disponibilização de registros caseiros da vida de Kurt e Courtney no auge do sucesso da banda e do casal enquanto presença cativa no universo das celebridades. Impressiona justamente a quantidade de gravações amadoras em uma época em que as câmeras ainda não eram tão populares (vale lembrar: Kurt morreu em 1994).
As cenas da vida cotidiana do casal podem chocar alguns – em certo momento, Kurt está visivelmente drogado enquanto cuida da filha Frances –, mas certamente comoverão os que “conviveram” com eles nesta época. Há uma absoluta crueza e mesmo candura ao vermos estas cenas que demonstram puro afeto entre uma dupla que, mesmo vivendo uma atmosfera de completo caos, encontrou uma possibilidade de paz e aceitação enquanto estiveram juntos.
O homem por trás de Kurt Cobain
Por Alejandro Mercado
Onde você estava em 05 de abril de 1994? Passados 21 anos da morte de Kurt Cobain, ainda é difícil esquecer a cena de Vinette Tichi, à época, porta-voz da polícia de Seattle, transmitindo aos jornalistas a confirmação da morte do músico de apenas 27 anos de idade.
Cobain era ícone máximo de um gênero musical e da chamada “Geração X”, mesmo que ele não tenha, em qualquer instante, reclamado o posto. Vínhamos da década perdida, como ficaram conhecidos os anos 1980, em que boa parte da América – em especial a Latina – sofria uma estagnação econômica, com forte retração da indústria – consequentemente do emprego e do consumo. Havia ainda a descoberta do HIV; a Guerra Fria; a Guerra do Golfo. Kurt e o grunge eram um oásis nesse deserto repleto de incertezas, no qual boa parte desta geração (e me incluo nela) crescia.
Bleach (1989), primeiro álbum do Nirvana, não era um disco perfeito – mesmo com 1,7 milhões de unidades vendidas nos Estados Unidos e outros 4 milhões mundialmente. Nem mesmo Kurt Cobain gostava deste CD. Para o músico, as letras tinham muito mais ira do que o necessário, muito em função da pressão da gravadora para encaixar melhor o som do grupo na efervescência do gênero de Seattle.
Nevermind (1991) e In Utero (1993) também apresentaram diferentes versões de uma mesma pessoa. Enquanto no primeiro Cobain foi extremamente visceral, sabendo canalizar toda sua angústia e a dicotomia entre a ânsia do sucesso e a necessidade de isolamento, no segundo o músico estava soturno, entregue à depressão, à melancolia e aos seus fantasmas – sendo o pior deles o vício em heroína. E é esta transição, de Bleach ao In Utero, que vemos na tela do documentário Montage of Heck.
A maior virtude do filme, dirigido por Brett Morgen e distribuído mundialmente pela HBO, é nos colocar em contato com Kurt Donald Cobain, o homem por trás de Kurt Cobain, vocalista do Nirvana. O longa, exibido em algumas salas de cinema no Brasil, talvez só peque ao colocar o músico sob o olhar do fã, vitimado pela depressão, rejeitado pela família e tomado pelo vício em heroína. Claro que se tratam de verdades, porém, não podemos colocá-lo apenas como vítima das circunstâncias.
Em virtude disso, talvez a melhor forma de explicar o que Montage of Heck nos mostra, é citar a frase de Frances Bean Cobain, sua filha com Courtney Love. Em entrevistas, a jovem filha do cantor agradeceu ao diretor por dar-lhe duas horas com seu pai, as quais ela nunca teve realmente oportunidade de desfrutar. De forma geral é isto que Brett Morgen faz, nos colocando em contato com um Kurt Cobain humano, demasiadamente humano.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.