O longa-metragem Nise – O Coração da Loucura inicia por uma cena sintomática. O enquadramento da câmera é instável, tenso. Em frente a um gigantesco prédio metalizado, uma senhora bate insistentemente em uma porta, sem que ninguém a responda. Bate várias outras vezes, cada vez com mais força, até que finalmente alguém a ouça. Assim é representado o retorno da doutora Nise da Silveira ao hospital psiquiátrico Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, após sete anos afastada dele (ela havia sido presa durante o regime do Estado Novo, sob a denúncia de possuir livros comunistas).
A cena escolhida pelo diretor Roberto Berliner é bastante simbólica daquilo que Nise enfrentaria em sua volta. A insistência – e, por que não dizer, a arrogância – seria a marca do trabalho que construiria nos anos seguintes. Em plena década de 1940, quando a medicina celebrava as maravilhas das descobertas científicas para o tratamento dos doentes mentais (como eletrochoques e lobotomia), a psiquiatra, influenciada pelas ideias de Carl Gustav Jung, recusa-se a submeter os internos aos “tratamentos” da época. Acaba deslocada para o desprestigiado (e abandonado) setor de Terapia Ocupacional, onde dois enfermeiros já bastante desiludidos apenas cumpriam tabela – afinal, os “loucos” eram excessivamente violentos e desobedientes para que qualquer coisa pudesse fazer diferença.
Inserido numa leva de cinebiografias hoje muito frequentes no circuito brasileiro, Nise – O Coração da Loucura não pretende retratar a completude da vida da psiquiatra, mas sim focar no processo que a consolidou com uma profissional central, no Brasil e no mundo, no tratamento das doenças mentais e na luta do movimento antimanicomial.
Michel Foucault, em sua obra, esclareceu que a função central dos manicômios era dar certeza aos que estavam fora deles que não eram loucos. Nise, durante sua trajetória, visava desprogramar este lugar destinado aos desencaixados socialmente, buscando mecanismos para compreendê-los em suas lógicas. Em uma abordagem que privilegiava a afetividade e o respeito pelos clientes – Nise se recusava a chamá-los de “pacientes”, por defender que estava prestando um serviço a eles – aos poucos os internos começavam a se sentir livres para se expressar de uma outra maneira que não a linguagem verbal.
A transposição da fascinante jornada de Nise da Silveira à tela é feita com respeito ao legado deixado pela médica, e envolve ainda um olhar vinculado ao mundo contemporâneo.
Ao trazer telas e tintas ao hospital, Nise e sua equipe têm uma surpresa: sem nunca ter visto qualquer imagem semelhante, eles começam a desenhar figuras que muito remetiam às formas essenciais do inconsciente descritas por Jung em sua obra. Sem as violências reservadas aos chamados doentes mentais, eles começam a encontrar formas de cura a partir do resgate daquilo que parece apenas confusão, formas assimétricas, cores que expressam algo para além da lógica. Surge então uma vasta e celebrada obra artística produzida pelos clientes de Nise, cujas exposições correriam o mundo, chegando mesmo a causar impacto em Jung.
A transposição da jornada de Nise da Silveira à tela é feita com respeito ao legado deixado pela médica, e envolve ainda um olhar vinculado ao mundo contemporâneo (afinal, é possível narrar a história sem o olhar de hoje?). Ou seja, a personagem de Nise tem algo de idealizado, de “mulher empoderada”, e causa um certo incômodo que todos os iguais a ela sejam homens excessivamente desrespeitosos a todas as suas descobertas, por mais evidentes que elas sejam. O maniqueísmo da trama, porém, não tira o brilho de Nise – O Coração da Loucura, uma obra muito esperada e que traz luz a uma grande personalidade brasileira, não muito conhecida do grande público.
A grandeza do filme se dá sobretudo pelo trabalho dos atores, a começar pela interpretação de Gloria Pires, comprovando aqui sua reputação na dramaturgia nacional, mas sobretudo pelos atores que interpretam os enfermeiros e os esquizofrênicos, todos com performances muito sutis e sensíveis. Nenhum deles cai no risco da representação estereotipada da pessoa com alguma doença mental.
Se, como escreveu Erasmo de Rotterdam em O Elogio da Loucura, “às vezes é preciso ser louco para dizer o óbvio”, os “loucos” tratados por Nise revelavam estar mais lúcidos que muitos dos tidos como normais, visto estarem mais abertos ao contato com aquilo a que normalmente tememos – o misterioso e obscuro universo do inconsciente. Para a alegria de todos os admiradores do trabalho desta psiquiatra, Nise – O Coração da Loucura consegue fazer justiça a esta fascinante história.
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