Em determinado momento de No Portal da Eternidade (2018), a liberdade criativa do roteiro imagina como seria, em detalhes, uma conversa entre Vincent van Gogh e um padre que vai até ele com a missão de avaliar se o pintor holandês poderia ou não sair do hospital psiquiátrico onde estava. Visivelmente incomodado por aquilo que julga ser um quadro “desagradável”, “feio”, o padre (interpretado por Mads Mikkelsen) pergunta se o artista considera que teria recebido de Deus um dom que se manifestava naquela qualidade inferior de arte. O protagonista, então, responde que, talvez, ele estivesse deslocado de sua época; que, talvez, Deus tivesse dado a ele um talento que só poderia ser claramente compreendido e devidamente interpretado pelas gerações futuras. “É possível”, ratifica o padre.
Esse diálogo imaginário é bastante simbólico por resumir o que acabou acontecendo. A biografia de Van Gogh e o que se sabe que aconteceu depois de sua morte, com ele sendo considerado um dos pintores mais famosos da história das artes plásticas, fazem com que o artista seja “carimbado” como um “incompreendido”.
No Portal da Eternidade, dirigido por Julian Schnabel (que também é pintor), tenta integralmente, dos segundos iniciais aos segundos finais, mostrar a amplitude dessa incompreensão. O filme procura comprovar essa ideia do quanto o pintor holandês foi mesmo um homem descolado de seu tempo, um artista sensível mal interpretado por praticamente todos que com ele conviveram. Rechaçado por artistas e moradores, acumulava pinturas sem vender, dependendo da ajuda financeira do irmão mais novo, Theo (Rupert Friend).
A paleta destaca o azul e o amarelo, cores tão amadas por Van Gogh e tão presentes no conjunto de suas obras. Além disso, os olhos de quem assiste são presenteados por belas paisagens naturais
Poucos o reconheceram em vida. Pouquíssimos, na verdade. Ele vendeu apenas um quadro antes de morrer. Na esfera afetiva, o pintor viveu submerso em solidão. Além do amor incondicional do irmão Theo, Van Gogh teve apenas uma amizade conturbada com o também pintor Paul Gauguin (Oscar Isaac). Uma amizade marcada pelas personalidades distintas de cada um, que resultou em uma briga da qual nasceu o episódio do famoso corte da própria orelha de Van Gogh.
O roteiro é cuidadoso em sua intenção de mostrar toda a solidão do artista amparado pela direção de fotografia, que coleciona várias cenas do refúgio do pintor em ambientes naturais. Constantemente, há enquadramentos de vegetação sendo balançada por vento, algo que remete à liberdade de Van Gogh enquanto ele está solitário, andando em meio à natureza.
O filme inicia com câmera subjetiva, aquela por meio da qual o espectador vê exatamente o que o personagem está vendo. Na sequência, passa para a insistência de câmera na mão, recurso que faz referência à instabilidade emocional atribuída ao personagem.
A paleta destaca o azul e o amarelo, cores tão amadas por Van Gogh e tão presentes no conjunto de suas obras. Além disso, os olhos de quem assiste são presenteados por belas paisagens naturais, sobretudo de Arles, na Provença, região da França com luminosidade apreciada por vários pintores para compor suas obras.
Outro destaque de No Portal da Eternidade é a louvável caracterização de Willem Dafoe no papel de Vincent van Gogh, atuação que lhe rendeu uma indicação ao Oscar 2019 na categoria de Melhor Ator. Existe até uma certa semelhança física entre ator e personagem, considerando as imagens que chegaram aos dias atuais na forma dos muitos autorretratos feitos pelo pintor holandês.
O filme prossegue até desembocar na morte envolvida em mistério do protagonista: teria sido assassinato ou suicídio? O fato de Van Gogh não lembrar-se das coisas prejudicou o repasse para a posteridade do que realmente aconteceu, considerando que ele sofreu ferido por horas antes de morrer.
O filme, em seu conjunto de roteiro, fotografia e diálogos imaginados a partir daquilo que se conhece da vida do pintor holandês, serve como uma espécie de pedido de perdão ao artista. É incômodo verificar o quanto ele é retratado como um incompreendido e com muitos problemas psicológicos, afetivos ou financeiros.
Por tudo o que foi comentado e partindo do próprio título, No Portal da Eternidade chega aos créditos finais mostrando ser uma versão mais estendida e ancorada em imagens do seguinte trecho da canção Starry, Starry Night (Estrelada, Noite Estrelada), de Don McLea: “…eu poderia ter dito a você, Vincent, esse mundo não foi feito para alguém maravilhoso como você. (…) Agora eu acho que entendo o que você tentou me dizer…”.
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