Na primeira cena de Noites Alienígenas, longa-metragem que foi o grande vencedor do Festival de Gramado em 2022 (arrebatou nada menos que seis Kikitos, incluindo o de melhor filme), vemos um jovem que parece convalescer em uma casa de palafita. Ao seu corpo, perpassa, de maneira sombria e sedutora, uma gigantesca cobra. O que significaria a presença do animal envolvendo um corpo em transe?
Uma leitura possível é entender que a criatura simboliza um dos temas centrais do filme de Sérgio de Carvalho: o conflito entre a natureza e a urbanidade doente. A trama de Noites Alienígenas se passa no Rio Branco, capital do Acre, em um cenário bastante empobrecido, em que três jovens tentam sobreviver da forma que dá. Contudo, logo entendemos que, embora eles estejam enfrentando a miséria de várias formas, há forças mais poderosas (ainda que muitas vezes esquecidas) que circulam por lá.
Riva (Gabriel Knoxx, vencedor de Kikito de Melhor Ator em Gramado) tem 17 anos e alma de artista. Quando o conhecemos, ele está desenhando um disco voador na parede da casa do chefe, Alê (o experiente Chico Diaz, vencedor do prêmio de Melhor Ator Coadjuvante). O sujeito faz parte de uma espécie de “tráfico velha guarda” e vende drogas para a meninada, mas claramente tem um estilo mais ligado à cultura hippie e à expansão da mente. Aos poucos, Alê está vendo a capital ser tomada por novas gangues vindas do Sudeste que estão profissionalizando esse mercado.
Em outra ponta, está Sandra (papel de Gleici Damasceno – sim, a campeã do Big Brother Brasil 18), uma jovem mulher que tem um filho que cria sozinha. O pai é Paulo (Adanilo Reis, menção honrosa no Festival de Gramado), um indígena que está afundado nas drogas. Seu vício parece estar lhe levando cada vez mais ao fundo do poço, o que o faz negligenciar o filho e preocupar tanto os amigos quanto a família.
Riva, Sandra e Paulo cresceram juntos, mas estão seguindo rumos quase opostos. Enquanto Sandra leva uma vida mais ordinária, tentando ganhar dinheiro como garçonete, Riva tenta crescer no caminho do crime, para desespero de sua mãe, a intensa Heloísa (vivida pela excelente Joana Gatis, que levou o Kikito de melhor Atriz Coadjuvante).
Forças alienígenas e os elementos da floresta
É justo compreender o grande vencedor de Gramado como um filme-denúncia, que está nos trazendo informações sobre o quanto os inimigos externos (representados aqui pelo crime organizado e pelo tráfico de drogas) estão abatendo as forças de um lugar que é naturalmente regido por uma cultura muito mais poderosa.
É justo compreender o grande vencedor de Gramado como um filme-denúncia.
A ideia dos alienígenas do título, retomada em vários momentos do filme (como as luzes que cercam os personagens, em especial Alê, que quase é arrebatado em uma cena), simboliza a chegada de intrusos que, embora fascinantes aos mais jovens, só trazem a destruição. Isso aparece tanto na história de Paulo, acometido pelo vício, quanto de Riva, que flerta com a ambição representada pelo crime profissional.
Há um elemento pertinente e invisível em Noites Alienígenas, que é a ausência da figura do pai na história de cada um dos personagens. Logo entendemos que Riva só tem a mãe, com quem mantém uma relação conflituosa. Já Paulo é envolto pela mãe e avó indígenas – que buscam ora conforto na igreja evangélica, ora nos saberes da Amazônia. Sandra, por outro lado, é a mãe solo que cria um filho de pai ausente.
Nas cenas mais belas do filme, vemos as ancestrais de Paulo fazendo rituais para “curar” o corpo enfermo do filho violado pelas drogas, ou seja, pelos danos trazidos até o Acre por uma cultura externa e predatória.
Embora a miséria tratada em Noites Alienígenas pudesse passar em qualquer periferia das grandes cidades, são cenas com estas que inscrevem a obra em um Brasil dentro do Brasil e o tornam um filme contundente e necessário.
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