Quando O Beijo da Mulher Aranha estreou em 1985, o cinema latino-americano ganhava uma de suas obras mais audaciosas — e universais. Dirigido por Hector Babenco, o filme adaptava o romance do argentino Manuel Puig para narrar o encontro entre dois prisioneiros em uma cela de regime autoritário: Molina, um homossexual aficionado por melodramas, e Valentin, um militante político encarcerado por suas atividades subversivas. O embate entre esses dois mundos — desejo e ideologia, fantasia e engajamento, fuga e resistência — ecoava, com rara delicadeza e força, as contradições da América Latina sob ditadura.
Quarenta anos depois, o filme continua a impressionar por sua ousadia estética e emocional. Indicado a quatro prêmios da Academia — melhor filme, direção, roteiro adaptado e ator —, consagrou William Hurt, que conquistou o Oscar e a Palma de Ouro em Cannes por sua interpretação de Molina. Raúl Julia, como Valentin, ofereceu uma performance densa e comovente. E Sonia Braga, no papel de Aurora — a mulher idealizada nas fantasias cinematográficas de Molina —, iniciava ali sua trajetória no cinema internacional com presença hipnótica e multifacetada.
O projeto foi um ponto de virada na carreira de Hector Babenco. Nascido na Argentina e radicado no Brasil, o cineasta vinha de Pixote: a Lei do Mais Fraco (1981), um retrato cru e devastador da infância marginalizada no país. Baseado no livro-reportagem A Infância dos Mortos, de José Louzeiro, Pixote revelou ao mundo o talento de Babenco para combinar realismo social com uma sensibilidade humanista nada condescendente. Fernando Ramos da Silva, Jorge Julião, Marília Pêra (premiada internacionalmente pelo papel de Sueli) e outros não-atores compuseram, sob a direção de Babenco, uma narrativa marcada pela dor, pela exclusão e pela fratura precoce de qualquer possibilidade de infância.
Com O Beijo da Mulher Aranha, Babenco deu um salto — não de temas, mas de linguagem.
Com O Beijo da Mulher Aranha, Babenco deu um salto — não de temas, mas de linguagem. Se em Pixote a estética é crua, quase documental, em O Beijo da Mulher Aranha a prisão se torna espaço simbólico, onde a imaginação serve como forma de sobrevivência. Molina narra, com paixão e minúcia, filmes antigos para fugir da brutalidade do cárcere. Mas o que poderia soar como escapismo revela-se, pouco a pouco, um território de reconexão com o outro. A ficção, afinal, também é um modo de resistência.
O filme foi rodado com financiamento internacional e se tornou um marco do cinema de coprodução entre América Latina e Estados Unidos. A escolha de William Hurt para o papel principal não só foi ousada como decisiva: seu Molina é delicado, complexo, sem jamais cair na caricatura. Babenco conduz com precisão a interação entre os personagens, evitando maniqueísmos e investindo em ambiguidade e profundidade emocional. A cela que os aprisiona é, paradoxalmente, o espaço onde ambos se tornam mais livres.
O êxito do filme abriu caminho para outras produções de Hector Babenco fora do Brasil. Ele dirigiria Ironweed (1987), com Jack Nicholson e Meryl Streep, e Brincando nos Campos do Senhor (1991), uma adaptação ambiciosa do romance de Peter Matthiessen filmada na Amazônia, com elenco internacional. Nenhum desses filmes, porém, alcançou o mesmo impacto estético e simbólico de O Beijo da Mulher Aranha.
Em 2025, a história de Puig volta às telas em nova adaptação, agora baseada no musical homônimo da Broadway. A direção é de Bill Condon (Dreamgirls, Deuses e Monstros) e o elenco tem Jennifer Lopez nos papéis femininos que foram de Sonia Braga. A expectativa é que o filme dialogue com novos públicos, atualizando questões de identidade, liberdade e opressão em um tempo igualmente marcado por conflitos e polarizações.
Mas é a versão de Hector Babenco que permanece como obra definitiva: por seu equilíbrio entre intimismo e política, por sua reverência à força da imaginação, e por traduzir, com raro lirismo, o drama latino-americano da segunda metade do século XX. Quarenta anos depois, O Beijo da Mulher Aranha continua a nos encarar com olhos abertos — e a sussurrar que resistir também é sonhar.
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