Quando a narrativa de O Castigo, de Matías Bize, se inicia, o erro já foi cometido. Não o vemos, não o testemunhamos diretamente, apenas sentimos seus efeitos. Na trama, um casal deixa o filho pequeno à beira da estrada como forma de punição. Ao voltarem minutos depois, a criança desapareceu. O cinema de Bize, fiel à sua tradição de minimalismo emocional e rigor formal, e cuja filmografia já abordou em outros momentos questões íntimas das relações, como em La Memoria del Agua (2015), dispensa explicações, elipses confortáveis ou qualquer desejo de absolvição. O que se desenrola a seguir, em tempo real e em um único plano-sequência, é menos a busca por uma criança e mais a exposição crua de uma estrutura familiar prestes a ruir.
O dispositivo formal — o plano contínuo que acompanha os personagens por cerca de 80 minutos — não funciona como exibicionismo técnico, mas como estratégia ética, ainda que por vezes torne a experiência cansativa. A câmera se recusa a desviar o olhar, assim como o filme se recusa a oferecer atalhos morais ao espectador. Estamos presos àquela situação tanto quanto Ana (Antonia Zegers) e Mateo (Néstor Cantillana). Cada segundo pesa. Cada silêncio se alonga. Cada espera é real. O Castigo não manipula o tempo para proteger o público do vazio e da angústia. Na realidade, faz o movimento inverso: obriga-nos a habitar o intervalo entre ação e consequência.
É nesse espaço que o filme encontra sua força mais perturbadora. A perda da criança, ainda que central, rapidamente deixa de ser o único motor dramático. O desaparecimento funciona como catalisador para algo mais profundo e incômodo: o desvelamento de ressentimentos acumulados, pactos silenciosos e desigualdades emocionais que estruturam aquela relação. A maternidade, aqui, não é retratada como instinto puro, nem como território de redenção automática. Pelo contrário, surge atravessada por exaustão, frustração e culpa — sentimentos raramente autorizados no imaginário social sobre o papel materno.
Antonia Zegers sustenta o filme com uma atuação de contenção impressionante. Sua Ana é uma personagem que desafia expectativas: não performa desespero da forma esperada, não se curva facilmente à culpa pública, não oferece ao espectador o conforto da identificação imediata. Há algo de opaco em seus gestos, de defensivo em sua postura, como se estivesse permanentemente sob julgamento — não apenas da polícia, do marido ou da sociedade, mas de si mesma. Bize e a roteirista Coral Cruz constroem essa personagem sem psicologismos fáceis, permitindo que suas contradições emerjam no atrito com o outro, especialmente com Mateo.
Cantillana, por sua vez, encarna um pai dilacerado entre o amor pelo filho e a incapacidade de assumir plenamente sua parcela de responsabilidade. Seu personagem prefere o pânico à reflexão, a comoção à autocrítica. O conflito entre os dois não é explosivo, mas corrosivo. Não se trata de vilões e vítimas, e sim de adultos emocionalmente mal equipados para lidar com a complexidade da parentalidade. O roteiro é preciso ao mostrar como decisões “compartilhadas” muitas vezes escondem assimetrias profundas: quem disciplina, quem cede, quem carrega a culpa e quem se permite escapar dela.
A entrada da polícia na narrativa, especialmente através da personagem de Catalina Saavedra (de A Criada), introduz um contraponto fundamental. Sua presença não vem carregada de histeria nem de julgamento explícito. Ao contrário, funciona quase como um espelho institucional diante do qual o casal é forçado a organizar sua versão dos fatos. É nesse momento que O Castigo desloca definitivamente seu centro de gravidade: a busca pela criança passa a dividir espaço com a necessidade de nomear o ato que deu origem a tudo. O filme não transforma essa revelação em clímax moralizante. Apenas observa. E essa observação, fria e atenta, é justamente o que mais inquieta.
O roteiro é preciso ao mostrar como decisões “compartilhadas” muitas vezes escondem assimetrias profundas.
Visualmente, o filme de Bize explora o ambiente natural — a estrada, a floresta, o cair da noite — como extensão do estado emocional dos personagens. A mata não é apenas cenário, mas ameaça latente, território do desconhecido, espaço onde o controle urbano e parental se dissolve. O plano-sequência intensifica essa sensação ao articular proximidade e distância: ora a câmera se cola aos rostos, ora se afasta, permitindo que o entorno pressione os corpos em cena — isso quando não trêmula, como se alertasse da proximidade de um desmoronamento. Tudo contribui para uma experiência de claustrofobia paradoxal, mesmo ao ar livre.
O Castigo não oferece conforto. Seu desfecho é ambíguo, duro e, justamente por isso, honesto. Não há lição clara, não há redenção assegurada. O filme parece mais interessado em expor feridas do que em cicatrizá-las. A obra de Bize aposta no desconforto como forma de pensamento e rejeita se organizar em campos morais rígidos e respostas rápidas como, por vezes, o debate público parece se estruturar. Exige do espectador maturidade emocional para sustentar perguntas sem resposta e para reconhecer que amar, educar e conviver são tarefas atravessadas por falhas irreversíveis.
Sem recorrer ao sensacionalismo, O Castigo se afirma como um dos retratos mais incisivos e incômodos da parentalidade recente no cinema latino-americano. Um filme que não pede que escolhamos lados, mas que aceitemos a complexidade — e o peso — de estar em cena quando tudo dá errado.
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