Um filme que rodou o mundo antes de chegar ao Brasil. Um filme que chamou a atenção da crítica e do público antes mesmo de termos a honra de assistirmos às suas quase duas horas de duração. O roteiro criado até o dia de hoje, quinta-feira, 27 de agosto, data da estreia nacional de Que Horas Ela Volta?, escrito e dirigido pela paulistana Anna Muylaert, parece ter uma lógica maior do que a simples opção pela participação em festivais internacionais.
Que Horas Ela Volta? é muito mais que um filme sobre conflito de classes. Chego a crer que em nenhum momento ele assuma essa configuração. O longa-metragem de Anna Muylaert é um filme sobre o vazio que preenche as sociedades contemporâneas e que, ao abordar pontos nevrálgicos de nossa sociedade, talvez ficasse taxado como um filme panfletário, crítica puramente social, fazendo com que parte do público perdesse o interesse em ir ao cinema. Então, sua volta ao mundo foi uma lógica necessária.
O filme narra a história de Val (Regina Casé em excelente atuação), uma pernambucana que se mudou para São Paulo em busca de oferecer melhores condições a sua filha, Jéssica. Mais de dois mil quilômetros as separaram por longos treze anos, criando um buraco na relação entre mãe e filha. Ao mesmo tempo, esses anos foram dedicados à criação de Fabinho (o jovem ator Michel Joelsas), filho de uma típica família de classe média alta da capital paulista.
A rotina de Val e da família para a qual trabalha sofre uma reviravolta quando Jéssica decide ir a São Paulo para prestar o vestibular. Ao deixar de seguir certos “protocolos comportamentais”, a jovem cria situações embaraçosas na casa onde sua mãe trabalha.
Neste momento, somos colocados diante de uma importante questão. Quem somos nós no filme? Acredito que sejamos todos e, de certa forma, é assim que somos guiados pela direção e roteiro de Anna Muylaert. A diretora utiliza os enquadramentos e as sutilezas narrativas para mostrar que somos, ao mesmo tempo, cara e coroa, em um momento que valores como honestidade, amor, companheirismo, respeito, compaixão e tantos outros – muito maiores do que os “tradicionais valores da família brasileira de bem” – estão em declínio.
Bárbara (Karine Teles) e Carlos (Lourenço Mutarelli), pais de Fabinho, são um casal hype, porém preso às convenções sociais. O mesmo abismo existente na relação entre Val e sua filha é encontrado na relação familiar de Bárbara, Carlos e Fabinho. Distantes, desconexos da realidade um do outro, assistem ao que se passa em suas vidas pela fresta existente entre a tela de um dispositivo eletrônico e o mundo.
Em Que Horas Ela Volta?, os personagens encontram-se centralizados no enquadramento da cena ou sempre em lados diametralmente opostos, divididos em partes iguais. Como os personagens trocam a todo instante de lado, vemos que aqui as coisas vão muito além da esquerda ou direita, do certo e errado, fugindo (de forma brilhante, diga-se de passagem) de um discurso maniqueísta.
Os personagens trocam a todo instante de lado, fugindo de um discurso maniqueísta.
Anna nos leva até São Paulo e nos torna cúmplices do que vemos na tela. Somos o olhar de sua câmera, que expande seu enquadramento para um plano geral durante as discussões entre mãe e filha, quase como se nos apontasse a pequenez disto (que pode ser a discussão ou a vida de Val e Jéssica) sob nossa ótica; ou quando dá um close nos momentos de tensão durante o longa, criando uma sensação sufocante, claustrofóbica, como se estivéssemos colados àquele momento e percebêssemos pequenos absurdos nas sutilezas dos discursos cotidianos.
Entre risos pelo humor irônico das falas de Val, do surreal Carlos, das contradições e reviravoltas da vida – que por vezes parece se repetir ciclicamente – e das simbologias que tomam importância necessária (como no caso do sorvete e das xícaras de café), Que Horas Ela Volta? é uma crônica doce e comovente, e provavelmente a melhor obra de Anna Muylaert (e do ano – não apenas no Brasil).
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