Imagine um documentário que não entrevista nenhum especialista, testemunha ou utiliza material histórico para contar uma história que marcou os noticiários norte-americanos nos anos 90. Impossível, certo? Ou, no mínimo, sem credibilidade, não é? Não se você for criativo e explorar o ângulo correto, o que é exatamente o que Quem é JonBenet (ou Casting JonBenet) faz.
Não espere descobrir a resolução do assassinato notório da miss mirim JonBenet Ramsey ou saber todos os fatos do crime, que aconteceu há mais de 20 anos. O que recebemos é o boca a boca, a fofoca, a memória – distorcida ou não – dos habitantes locais da cidade de pouco mais de 100 mil habitantes onde a tragédia se passou.
A premissa do documentário da Netflix, dirigido e produzido por Kitty Green, é simples: filmar o processo de escolha de elenco (o casting do título) para uma produção que reproduzirá os momentos finais da vida da criança de 6 anos, misteriosamente assassinada no meio da noite em sua própria casa. Todos os atores que participam das audições são amadores ou semi-profissionais, e mais importante: residentes da cidade de Boulder, no Colorado, onde tudo aconteceu.
São essas pessoas – que competem pelos papéis dos pais da garota, do chefe de polícia e afins – que narram o que aconteceu para os que possam desconhecer de todos os detalhes. Mas, como tudo que sabem do caso é o que viram na televisão ou boatos que se espalharam na época, cada versão é imbuída das opiniões pessoais e muitas vezes fantasiosas dos participantes.
Essa forma diferente de contar a história, como que pela ótica dos vizinhos fofoqueiros.
Nunca é mostrado uma imagem real da família Ramsey ou da vítima, nem filmagens da época ou de uma fonte oficial. Tudo que sabemos sobre eles, inclusive descrições de suas personalidades e motivações, é o que esses estranhos tiraram de conclusões. As justificativas e os argumentos embasados para o que cada um acredita que aconteceu naquela noite também reflete uma cultura de interesse pelo macabro, e em que todos se acham capazes de solucionar um crime a partir do senso comum.
Volta e meia o filme brinca ao testar algumas dessas teorias, quando como pedem que os concorrentes ao papel do irmão de JonBenet, um dos suspeitos, apesar de ser um menino de apenas 8 anos, tentem esmagar uma melancia com uma lanterna, de forma a provar que um garotinho teria força suficiente para o ato.
Essa forma diferente de contar a história, como que pela ótica dos vizinhos fofoqueiros, já seria bem interessante por si só, mas ajuda o fato de que o caso é realmente cheio de incoerências e mistérios. No lado negativo, ficam várias lacunas a serem preenchidas para nós que não vivemos o furor midiático na época e a sensação é que nos foi contada uma história incompleta.
Ainda assim, o saldo é positivo. Já ao fim de Quem é JonBenet, os depoimentos se tornam cada vez mais pessoais e sinceros. Mais do que só sobre o caso, acaba se tornando um estudo sobre o processo de audições e o tipo de pessoa que se submete a isso. Descobrimos como cada um deles se relaciona de forma diferente com o caso, sempre de uma maneira emocional e com ligação a uma memória pessoal intensa.
Visualmente, o longa é muito simples e as reencenações lembram algo visto no canal Investigação Discovery. Quase parece uma referência ao amadorismo das produções que exploram crimes reais, já que o objetivo sempre foi o processo e não o produto final para o qual estão escalando esses amadores.
Uma exceção talvez sejam as últimas cenas, que mostram os atores escolhidos já em seus papéis efetivamente. Apesar de ainda não serem tecnicamente desafiadores, são os únicos momentos que exigem uma certa estética e entregam enquadramentos e cortes coesos, que remetem muito mais ao teatro do que ao cinema em si. Funciona e dá aquela sensação de estar ouvindo uma fofoca escandalosa. Aquela sensação de sentir vergonha por ter extrema curiosidade em ouvir.
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