“Uma mulher não pode ter dois sonhos?”, pergunta-se em certo momento Linda Brummel (Meryl Streep), que se renomeou Ricki Rendazzo, a roqueira à frente da banda Ricki and The Flash. Esta é uma questão central em Ricki and The Flash – De Volta Pra Casa, novo longa de Jonathan Demme (diretor de grandes obras como O Silêncio dos Inocentes), com um aguçado roteiro da escritora Diablo Cody (famosa do grande público por sido roteirista de Juno).
O filme se centraliza na história de uma mulher deslocada dos papéis que foram destinados a ela: Ricki, como mãe, é malvista, pois largou a calma vida suburbana e a criação dos filhos para buscar o seu segundo sonho, a carreira musical. Como roqueira, Ricki é contraditória: ainda que seja moderna e progressista, tem algo de conservadora tanto nas suas posições pessoais quanto políticas (o filme abre com uma piada em que Ricki critica Barack Obama, referindo-se a ele como “aquele cara que elegemos em 2008”). Em uma típica história da redenção, a trama gira em torno da volta de Ricki à família “coxinha” que ela abandonou, quando sua filha é deixada pelo marido e tenta se suicidar. O confronto consigo mesma é, portanto, inevitável.
Ainda que a história não tenha lá muita originalidade, Ricki and The Flash – De Volta Pra Casa é repleto de boas cenas e pequenas grandes sacadas que o tornam memorável. A começar pelo texto, que tira proveito do talento afiado de Diablo Cody (observe, por exemplo, a cena em que a cantora compara o coração a um Big Mac) e pelos personagens complexos, que escapam da simplicidade dos estereótipos. O forte carisma de Ricki, por exemplo, nos aproxima e nos afasta desta protagonista que, acima de tudo, busca uma maneira de perdoar-se.
Ainda que a história não tenha lá muita originalidade, Ricki and The Flash – De Volta Pra Casa é repleto de boas cenas e pequenas grandes sacadas que o tornam memorável.
O olhar cortante do roteiro de Diablo ainda revela muito nas entrelinhas: os personagens em cena são todos adeptos aos ideais de uma vida simples e sustentável, mas são, em essência, muito reacionários e rejeitam fortemente os que são diferentes. Há, portanto, uma fina ironia com algumas facetas da cultura hipster, denunciando que, de alguma maneira, todos os discursos – mesmo os mais alternativos – podem ser domesticados, tornados regra, mainstream.
Por exemplo: há uma discussão leve sobre homofobia no filme, e talvez não por acaso os personagens gays apareçam sobretudo fazendo parte do staff que organiza um casamento, quase como se fossem objetos de decoração lá colocados para dar uma aura cool ao cenário (aos fãs de RuPaul’s Drag Race, uma dica: uma das drags do reality show faz uma ponta muito rápida em uma das cenas).
Obviamente, é inevitável destacar o trabalho da camaleônica Meryl Streep, muito à vontade no papel de Ricki, aqui contracenando com uma de suas filhas, a atriz Mamie Gummer. Aos 66 anos, Meryl está tão bem que faz lembrar da Madeline Ashton de A Morte lhe Cai Bem (1992), que nunca envelhecia. A roqueira faz jus ao rol de grandes personagens desta que talvez seja a maior atriz americana. Mesmo que alguns momentos do filme soem excessivos em razão do didatismo – como nos olhares brutalmente inquisitórios das pessoas ricas, e na cena em que Ricki, durante um show, faz um amargurado discurso sobre as expectativas sociais aos pais e às mães, dando como exemplo Mick Jagger – a jornada da cantora rumo ao próprio resgate e ao direito das mulheres sobre si mesmas é, no mínimo, encantadora.
Ainda que talvez a obra não se encaixe no rótulo de uma obra “feminista”- vale lembrar que resgate da cantora se dá, em partes, por intermédio do amor de um homem – é impossível ser mulher e não se identificar com a coragem e a rebeldia contraditória de Ricki Rendazzo. Há uma leitura plausível sobre empoderamento (palavra quase já esgotada pelo uso) feminino e sobre as possibilidades de que, em pleno século XXI, uma mulher possa tomar as rédeas da própria vida. Tudo isto torna Ricki and The Flash – De Volta Pra Casa um filme obrigatório àqueles que ainda se mantêm sensíveis a um drama familiar e têm seus corações acalentados por uma boa história de redenção.
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