Você seria capaz de desobedecer seu chefe se a ordem que recebesse confrontasse profundamente o seu conceito de justiça, correção e ética e atingisse negativamente milhares (ou milhões) de pessoas? Sendo “sim” a resposta, você estaria preparado para todas as consequências como perseguição, processo penal e até ameaças a familiares e amigos? No Brasil, um servidor público federal, por exemplo, tem como um de seus deveres, conforme claramente expresso na lei, “cumprir as ordens superiores, exceto quando manifestamente ilegais”. Questionar a ilegalidade de uma ordem superior foi exatamente o que Katharine Gun fez, em 2003, lá na Inglaterra. E é essa a história contada no filme Segredos Oficiais (2019), do diretor Gavin Hood.
Katharine, interpretada por Keira Knightley, era tradutora do serviço de inteligência britânico. No dia 31 de janeiro de 2003 ela recebeu, assim como todos os seus colegas de trabalho, um e-mail da Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos (NSA). A mensagem pedia a colaboração dos servidores britânicos com informações privilegiadas que pudessem pressionar os países que integravam o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) a aprovar a realização da guerra contra o Iraque. A deflagração do conflito, na ocasião, sofria ampla resistência da opinião pública.
Katharine era obrigada pela Lei de Segredos Oficiais, de 1989, a manter essa informação no mais absoluto sigilo. A mensagem representava uma parceria entre o então presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, e o então primeiro-ministro britânico Tony Blair. Mas considerando a exigência legal completamente antiética por basear-se na mentira da existência de armas de destruição em massa no Iraque, Katharine resolveu vazar o que sabia para a imprensa.
O material chegou até o repórter Martin Bright, interpretado por Matt Smith. Após investigação delicada para confirmar se o material recebido de fonte anônima era mesmo verdadeiro, o conteúdo foi parar na capa do The Observer, jornal britânico onde Bright trabalhava. A reportagem causou um alvoroço e ampliou o repúdio da população à Guerra no Iraque. Segundo avaliação do próprio Martin Bright em entrevista, as mentiras contadas por Bush e Blair podem ser consideradas o ponto de partida para a perda de credibilidade das instituições e a “política da pós-verdade”, na qual os governantes insistem em uma mentira para a população até ela (quase) tornar-se verdade.
Todo o filme possui um ritmo instigante, com roteiro didático sem ser simplista e capaz de reter a atenção, utilizando várias imagens reais. No entanto, a cena em que o jornalista recebe ligações de veículos de imprensa de várias partes do mundo é bastante emblemática por deixar evidente o impacto, a importância da informação que saiu dos “porões do poder” e ganhou a visibilidade de uma capa de jornal.
Segredos Oficiais amplia a lista de dramas baseados em fatos reais enfocando pessoas que movem montanhas em nome do que consideram o ético, o justo, o correto a fazer, mesmo em meio a pressões gigantescas, estresse e muitos transtornos que, não raras vezes, atingem pessoas próximas como forma de retaliação.
Aliás, a direção de fotografia de Florian Hoffmeister investe em tons escuros e cinzentos que, literalmente, reconstroem a atmosfera de Londres e, metaforicamente, remetem a tudo aquilo que é mantido estrategicamente pelas autoridades nas sombras, invisíveis, longe do olhar do público.
Essa atmosfera pesada, claustrofóbica, pode também ser interpretada como metáfora do estado de espírito da protagonista que, mesmo tendo certeza de ter tomado uma atitude correta, sofre com as pressões vindas da revelação feita. Katharine deixa claro, no decorrer do filme, estar convicta de que trabalha para o povo britânico e não para o governo. Se esse último desrespeita o primeiro por meio da mentira, na interpretação dela a lei de exigência de sigilo abria margem para o questionamento e, mais do que isso, para o descumprimento. Quanto mais considerando que uma guerra tem consequências terríveis para milhares (ou milhões) de pessoas.
Segredos Oficiais amplia a lista de dramas baseados em fatos reais enfocando pessoas que movem montanhas em nome do que consideram o ético, o justo, o correto a fazer, mesmo em meio a pressões gigantescas, estresse e muitos transtornos que, não raras vezes, atingem pessoas próximas como forma de retaliação. O filme dirigido por Gavin Hood soma-se a títulos como Spotlight: Segredos Revelados (2015), O Quinto Poder (2013), Snowden: Herói ou Traidor (2016) e Código de Honra (2011) no destaque da luta pelo que é certo. São filmes que louvam a atuação dos bons jornalistas e, sobretudo, dos whistleblowers, aquelas pessoas que, tendo informações privilegiadas, levam ao conhecimento de autoridades a prática de ilícitos. Quem sabe esse tipo de filme incentive ainda mais pessoas, ao redor do mundo, a fazer o mesmo.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.