Em Sonhos de Trem, a natureza não está ao redor — ela está dentro. O filme parte da novela curta e precisa de Denis Johnson para construir algo raro no cinema contemporâneo: uma experiência de silêncio, duração e escuta. Ambientada em Idaho no início do século 20 (e filmada nas florestas do estado de Washington), a história acompanha o nascimento violento da América moderna a partir de trilhos, machados e árvores derrubadas — mas sem qualquer euforia civilizatória.
Aqui, o progresso não é promessa. É ruído de fundo.
Robert Grainier, vivido por Joel Edgerton com um rigor assombroso, é um homem que parece sempre chegar tarde a tudo: à própria origem, à felicidade, ao sentido. Lenhador itinerante, ele deseja pouco — uma cabana à beira do rio, a presença da mulher que ama, Gladys (Felicity Jones, luminosa), e da filha pequena. Mas Sonhos de Trem é um filme que entende a felicidade como intervalo, nunca como destino.
A narrativa avança em fragmentos, como a memória: lampejos do passado, antecipações do futuro, imagens que não se organizam em linha reta. Grainier é um homem assombrado não apenas pelo que perdeu, mas pelo que nunca chegou a compreender. Aos poucos, transforma-se num corpo deslocado no mundo, um ermitão involuntário atravessando uma paisagem que não oferece respostas.
Clint Bentley e Greg Kwedar, que já haviam se destacado com Sing Sing, optam aqui por uma direção sem exibicionismo.
Nos encontros pelo caminho — um velho lenhador vivido por William H. Macy, um comerciante indígena interpretado por Clifton Collins Jr., uma guarda florestal de Kerry Condon — surgem frases que soam menos como lições e mais como constatações tardias. Uma delas resume o espírito do filme: o mundo precisa tanto de um homem sozinho na floresta quanto de um pregador no púlpito.
Clint Bentley e Greg Kwedar, que já haviam se destacado com Sing Sing, optam aqui por uma direção sem exibicionismo. A narração é econômica, a fotografia de Adolpho Veloso observa sem invadir, e a trilha de Bryce Dessner funciona como respiração — nunca como sublinhado emocional. Sonhos de Trem confia no espectador e no tempo, algo cada vez mais raro.
Embora íntimo, o filme é também um retrato da América em expansão permanente, construída sobre deslocamentos, apagamentos e silêncios. Há algo de gótico nessa travessia, mas sem o peso da grandiloquência. O que permanece é uma sensação estranha de bondade essencial, mesmo diante da perda — como se o mundo, apesar de tudo, ainda merecesse ser observado com cuidado.
A fotografia de Sonhos de Trem, assinada pelo brasileiro Adolpho Veloso, trabalha menos a ideia de composição espetacular e mais a de presença — como se a câmera estivesse ali para testemunhar, não para conduzir. A luz natural domina os enquadramentos, revelando florestas, rios e cabanas com uma materialidade quase táctil, em que o tempo parece depositado sobre a imagem. Há uma recusa deliberada do sublime fácil: a paisagem nunca se impõe como cartão-postal, mas como espaço vivido, atravessado por corpos pequenos diante de forças maiores.
Em interiores, a penumbra e o uso contido de sombras transformam a imagem em extensão do estado emocional de Grainier, reforçando a sensação de isolamento e deslocamento. É uma fotografia que observa, espera e aceita o silêncio — e justamente por isso torna visível aquilo que o personagem não consegue dizer.
O encerramento, ao som da voz grave de Nick Cave, sela essa experiência com precisão poética: sonhos confusos, imagens sobrepostas, uma mulher num campo de flores, um trem cortando a paisagem como um grito. Sonhos de Trem, um dos melhores filmes de 2025, não explica — permanece. Como certas lembranças que insistem em voltar quando tudo parece em silêncio.
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