Superman, dirigido por James Gunn, marca não apenas a reestreia do herói nos cinemas, mas o renascimento de um símbolo cultural. O filme estreia em um país à deriva — ideologicamente fraturado, socialmente exausto e politicamente instável. E é justamente neste contexto que o novo Superman emerge: como alegoria pungente dos Estados Unidos contemporâneo, tensionado entre a promessa de liberdade e justiça e a realidade de um país que flerta abertamente com o autoritarismo.
Não é a primeira vez que o personagem serve de espelho para os dilemas da sociedade estadunidense, mas talvez seja a mais explícita. A escolha de Gunn não é inocente. Em vez de apostar em uma abordagem cínica ou ultrarrealista, como tantos reboots recentes, ele resgata o idealismo clássico do herói — para contrastá-lo com um mundo em que o idealismo soa, muitas vezes, como ingenuidade.
David Corenswet entrega um Superman em crise de pertencimento. Não em relação à sua origem kryptoniana, mas ao próprio país que deveria proteger. Seus poderes não são mais vistos com admiração, mas com desconfiança. Seu altruísmo, com suspeita. Sua presença, com medo. É um reflexo direto da era Trump e do que veio depois: a paranoia xenófoba, o culto à força, o revisionismo histórico e a deslegitimação das instituições democráticas.
Rachel Brosnahan interpreta uma Lois Lane à altura dos novos tempos — uma jornalista combativa, que se recusa a suavizar a verdade. Em meio a fake news, manipulação de dados e ataques à imprensa, ela encarna a resistência civil. E é por meio dela que o filme aponta sua crítica mais contundente: não basta ter um herói com superpoderes se não há quem conte sua história com coragem.
Gunn parece saber que o verdadeiro conflito do filme não é entre Superman e um vilão específico. É entre duas ideias de América. Uma, baseada na abertura, no acolhimento e na justiça. Outra, marcada pela exclusão, pelo poder armado e pelo medo constante do outro.
O governo retratado no filme é ambíguo, os militares desconfiados, a população polarizada. O Superman de Gunn não é celebrado como salvador — é questionado como estrangeiro. A metáfora é direta e incômoda. Em um país que constrói muros e legisla contra imigrantes, o herói que literalmente caiu do céu é alvo de ressentimento e medo. A pergunta que ecoa é: quem merece ser americano?
A figura de Lex Luthor, interpretado com frieza calculada por Nicholas Hoult, amplia esse debate. Seu Luthor é um vilão com traços trumpistas evidentes — bilionário narcisista, manipulador da opinião pública, movido por ressentimento e ambição de poder absoluto. Ele não precisa gritar: domina com discurso, com estratégia, com frieza. Gunn o constrói como um avatar da elite que teme perder o controle para aquilo que não compreende — ou que insiste em não aceitar. Seu confronto com Superman é menos físico e mais ideológico: representa o embate entre a força autoritária e o ideal democrático.
Gunn parece saber que o verdadeiro conflito do filme não é entre Superman e um vilão específico. É entre duas ideias de América. Uma, baseada na abertura, no acolhimento e na justiça. Outra, marcada pela exclusão, pelo poder armado e pelo medo constante do outro. É uma batalha simbólica — e profundamente atual.
Esteticamente, o filme equilibra com eficiência o épico e o íntimo. A fotografia quente, os enquadramentos clássicos e a trilha sonora que remete aos anos dourados do cinema estadunidense reforçam a ideia de retorno às origens. Mas é um retorno crítico, que olha para o passado com olhos abertos, e não com nostalgia cega.
Superman, de James Gunn, é mais do que um reboot. É um manifesto. Um chamado à responsabilidade. Um lembrete de que os símbolos que escolhemos dizem muito sobre o tipo de país — e de mundo — que queremos construir. Num tempo em que a verdade é distorcida e os valores democráticos estão em disputa, o herói de capa vermelha surge, novamente, como provocação.
Talvez, para voltar a ser esperança, ele precise primeiro ser incômodo.
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