É preciso um bocado de coragem para revisitar um clássico do cinema contemporâneo da envergadura de Trainspotting, um dos títulos mais emblemáticos da década de 1990. O filme, baseado no romance homônimo do escritor escocês Irvine Welsh, é uma espécie de radiografia hiper-realista do universo de jovens filhos da classe operária na Grã-Bretanha dos derradeiros anos do século 20. Fala de alienação social, desemprego, sexo, drogas e rock and roll. Mas, principalmente, de aspectos mais sutis e existenciais na vida de seus personagens, como a falta de perspectivas, o não ter para onde ir, concreta e simbolicamente. Talvez, por conta disso mesmo, tenha se tornado, ao mesmo tempo, um registro histórico importante e uma obra atemporal, assim como Juventude Transviada (1955), de Nicholas Ray, estrelado por James Dean.
O cineasta Danny Boyle, então um ilustre desconhecido, ganhou reconhecimento internacional e está hoje entre os diretores de maior prestígio de sua geração – em 2009, venceu o Oscar de melhor direção por Quem Quer Ser Milionário? e realizou longas memoráveis, como Sunshine – Alerta Solar (2007) e 127 Horas (2010). Agora, duas décadas após o lançamento do filme que o projetou, ele traz ao mundo T2 Trainspotting, que reencontra seus personagens principais bem mais velhos, para um ajuste de contas. São quarentões corroídos pelo tempo que, cada um à sua maneira, têm de enfrentar as consequências de um passado errático, inconsequente, quando não criminoso.
Welsh já tinha publicado, em 2002, o romance Porno, continuação de Trainspotting. A obra serve de base para o roteiro de T2, que não é, entretanto, uma adaptação completamente fiel ao livro, embora tenha muitos de seus elementos, já que a trama do longa se passa mais uma década depois.
As possibilidades concretas de T2 resultar frustrante eram imensas. Icônico, o filme de Boyle transcendeu seu enredo, cristalizando-se no imaginário de seus fãs como uma obra que discute as vicissitudes da juventude. Trazer de volta à vida seus personagens em pleno século 21, amargurados e ressentidos, era, dessa forma, uma operação de risco, que Boyle desempenhou com bastante desenvoltura.
As possibilidades concretas de T2 resultar frustrante eram imensas. Icônico, o filme de Boyle transcendeu seu enredo, cristalizando-se no imaginário de seus fãs como uma obra que discute as vicissitudes da juventude.
Duas décadas mais tarde, muito se transformou, mas nem tudo. Mark Renton (Ewan McGregor) retorna a Edimburgo, na Escócia, único lugar do mundo que pode chamar de casa, mas não é exatamente um lar, doce lar. Traz na bagagem um tanto de amargura. Embora tenha sido o único do grupo a conseguir escapar do círculo vicioso em que se encontrava, graças ao golpe aplicado em seus amigos, está longe de ser um homem feliz. E o passado o espera.
Spud (Ewen Bremner) ainda enfrenta problemas com a heroína e abandonou a família. Sick Boy (Jonny Lee Miller) herdou um pub, mas ganha a vida explorando a prostituição e extorquindo clientes. E o violento Begbie (Robert Carlyle), há anos atrás das grades, é um poço de rancor.
O retorno de Renton traz de volta à tona uma avalanche de ressentimentos. No entanto, também pode ser a oportunidade de o quarteto se colocar de novo em movimento.
Embora não tenha o vigor, digamos, sociológico do original, o roteiro de John Hodge, que toma como base as obras de Welsh, dialoga bem com cenas e sequências de Trainspotting, criando elos narrativos muito inventivos, possibilitados também pela ótima montagem, a cargo de Jon Harris. A trilha sonora do primeiro filme, que conta com Iggy Pop, Lou Reed, New Order, Blur e Underworld, entre outros, é por vezes evocada, embora os temas do novo filme não sejam tão memoráveis, e tenham menos impacto dramático.
Menos importante que a trama propriamente dita, que gira em torno de um novo golpe planejado pelos amigos e da sede de vingança de Begbie, é a forma como Boyle conduz a narrativa de forma visualmente eletrizante, intoxicante. Difícil tirar os olhos da tela. Os fãs de Trainspotting não vão se decepcionar.
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