Há uma melancolia latente em Um Dia de Chuva em Nova York, mais recente filme do cineasta Woody Allen. Não é um traço novo em sua obra, mas, nesta comédia dramática e algo romântica, apresenta-se como um elemento determinante da trama, personificado por seu personagem central, o jovem estudante Gatsby Welles (Timothée Chalamet, de Me Chame pelo Seu Nome).
Verborrágico e visivelmente inseguro, é inevitável ver o protagonista como um alter ego do diretor. Suas falas, idiossincráticas, repletas de referências culturais, mas sempre algo hesitantes, parecem saídas da boca de um dos muito protagonistas neuróticos vividos pelo próprio Allen ao longo de sua extensa filmografia.
Gatsby (referência óbvia ao protagonista do romance clássico de F. Scott Fitzgerald, O Grande Gatsby) é rico e estuda em uma universidade exclusiva da Nova Inglaterra, que não é a primeira em sua jornada acadêmica – ele não sabe muito bem o que quer da vida.
Quando o filme tem início, ele e sua namorada, Ashleigh Enright (Elle Fanning, de Em Algum Lugar), estão a caminho de Nova York (cenário mítico na obra de Allen), onde vive a família de Gatsby. A garota estuda Jornalismo e tem uma entrevista marcada com badalado cineasta alternativo, Roland Pollard (Liev Schreiber). Aqui é preciso falar um pouco sobre o perfil dessa jovem. Deslumbrada, loira e um tanto burrinha, pelo menos aparentemente, ela parece ser uma personagem um tanto anacrônica, estereotipada, mas ela acaba vivenciando uma transformação ao longo da trama, que se desenrola ao longo de 24 horas.
Como a entrevista de Ashleigh vai acontecer em Nova York, Gatsby planeja um fim de semana ultrarromântico, cinematográfico, em sua cidade natal com a namorada, com direito a hospedagem no hotel The Pierre e reservas para alguns dos melhores restaurantes de Manhattan. É uma forma de ele mostrar todo seu potencial como amante, mas também deixa entrever uma fachada meticulosamente calculada, fake.
A chuva, que cai insistentemente, serve como uma metáfora dessa impermanência que se instala na vida dos personagens
Na verdade, Gatsby e Ashleigh se conhecem superficialmente e a fragilidade do relacionamento é evidenciada quando o casal chega à Big Apple. A chuva, que cai insistentemente, serve como uma metáfora dessa impermanência que se instala na vida dos personagens, incluindo aí também Pollard, o diretor de uma “nova Hollywood”, retratado com acidez e sarcasmo por Allen.
Enquanto aguarda a namorada, para quem a entrevista se torna um verdadeiro périplo mas também uma jornada de autoconhecimento, Gatsby percorre Nova York em uma espécie de incursão por sua própria subjetividade. Ele reencontra, por exemplo, um amigo de adolescência, um diretor de cinema novato, e Shan (a também cantora Selena Gómez), a irmã caçula de uma antiga “ficante” dele. A garota, desinibida, charmosa e inteligente, o faz repensar sua relação Ashleigh. O interessante é que, na outra ponta da trama, sua namorada também está vivendo experiências transformadoras, que de Gatsby a afastam.
Fazendo lembrar outros filmes nova-iorquinos de Allen, como Manhattan, Um Dia em Nova York, boicotado nos Estados Unidos por conta de acusações de assédio contra o diretor, também dialoga com Depois de Horas, subestimada obra-prima de Martin Scorsese, em sua estrutura. A trama é contruída a partir de encontros e desencontros entre personagens, regidos pelo acaso. Essas colisões vividas paralelamente por Gatsby e Ashleigh servem como rituais de audescoberta.
O resultado, ainda que irregular e aquém do melhor cinema de Allen, tem seu encanto e traz as marcas de um exímio contador de histórias e comentarista ímpar da natureza humana.
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