“Porque o maior defeito deste filme és tu, espectador. Tu tens pressa de envelhecer e o filme anda devagar. Tu amas a narração direta, o estilo regular e fluente e este filme e o meu estilo são como os ébrios: inclinam à direita e à esquerda; andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu. Escorregam e caem.”
Nada define melhor o filme de Fernando Coni Campos do que essa narração que se ouve ao longo do filme. Para Coni, a originalidade era fundamental – e a ebulição artística do contexto histórico em que vivia pedia isso. Contemporâneo a mestres como Glauber Rocha e dotado de uma grande influência do nouvelle vague de Jean-Luc Godard, Viagem ao fim do mundo (1968) pode ser considerado uma obra que muito representa o seu tempo. Prova disso é a própria trilha sonora, repleta de músicas do Tropicalismo, como “Alegria, alegria” e “Soy loco por ti América”.
Longe de ser um filme vago, o longa de Fernando Coni Campos parece ser o desejo de uma geração de cineastas em produzir um cinema mais instigante e engajado. O filme se passa em um avião onde cada um dos passageiros começa a refletir sobre as crises de suas próprias vidas.
Apesar de ter um protagonista, o jovem interpretado por Fabio Porchat (não confundir com o comediante do Porta dos Fundos), que engaja na leitura de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, a narrativa é não-linear e percorre o infinito psicológico de cada um dos personagens, quase que numa esquizoanálise freudiana. Uma freira que questiona a existência de Deus e a função social da igreja, uma linda modelo publicitária que parece ser infeliz com a vida e um senhor casado que delira em flertar com a moça bonita no banco da frente.
Longe de ser um filme vago, o longa de Fernando Coni Campos parece ser o desejo de uma geração de cineastas em produzir um cinema mais instigante e engajado.
Apesar de ser um contemporâneo dos cinemanovistas, o longa é destrinchado em uma linguagem menos sofisticada, quase que pretensiosamente na tentativa de demonstrar um desencanto político com a sua contemporaneidade. Como uma espécie de cartilha contracultural do mundo moderno, o filme bebe muito de um niilismo típico de sua época: uma crítica às massas que consomem a publicidade, a desilusão da humanidade após a 2ª Guerra Mundial e a relação do homem com a mãe-natureza. Tudo isto em recortes surrealistas intercalados com os pensamentos mais profundos de cada um dos personagens. Além disso, Viagem ao fim do mundo é repleto de simbolismos: o sonho do protagonista de Machado de Assis ao conversar com um hipopótamo ao tentar entender a humanidade e a mãe-natureza como uma linda mulher de cabelo esvoaçante em uma praia deserta.
Ao contrário do seu primeiro longa, Morte em 3 tempos (1964), que tinha um tom mais policialesco e sofreu várias censuras durante o período de exibição, na viagem de Coni não há limites para um surrealismo reflexivo e delirante.
Vale lembrar que no período em que estreou, o país vivia uma série de restrições com o advento do AI-5 e a ditadura militar. Trabalhar com uma linguagem menos direta e mais subjetiva era, de fato, uma necessidade.
O cineasta flerta também com o documentarismo, principalmente na cena em que parece entrevistar um médico sobre as causas do câncer e a relação deste com a lutas travadas contra o socialismo durante a Guerra Fria.
O filme termina com cada um dos passageiros chegando ao seu destino final: a moça bonita volta a vida infeliz com o seu marido, o quarentão vive um delírio em que morre ao ser atropelado com uma bolsa cheia de dinheiro e o rapaz se desilude após ter dado um beijo na supermodelo. No entanto, nada parece ser tão real quanto o desejo de entender a humanidade, intrínseca na obra de Coni Campos.
Pretensioso ou não, a viagem proposta por ele não tem um destino específico se não tentar entender a construção do mundo moderno como ele é.
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